O complexo envelhecer das travestis
   12 de agosto de 2023   │     19:03  │  0

“Há padrões estabelecidos que respondem a uma determinada forma de organização econômica e social. O que nos importa é saber qual é o impacto que as normas de gênero têm sobre as travestis que atravessam a vida e atingem a velhice”, esta é a frase que abre a finalização da Dissertação de Mestrado (PUC/SP) “Travestis envelhecem?” de Pedro Paulo Sammarco Antunes.

Refletindo sobre a afirmação do autor, é fundamental que lembremos que sempre estivemos e sempre estaremos submetidos a regras de conduta, independente de nossa condição sexual. É claro, que para “alguns” ou “muitos”, os padrões estabelecidos podem se tornar cruéis e até desumanos.

Para Antunes, “Seus corpos foram apropriados pelos saberes religiosos, jurídicos e científicos determinando como eles deveriam se comportar. Ao invés de viver o que pode um corpo, são pressionadas a viver o que “deve” um corpo (…)”.

Mas será que apenas as travestis vivem de imposições, julgamentos e deveres alheios? Se perguntarmos a qualquer pessoa o quanto ela se sente invadida, vigiada, restrita a um determinado espaço, a resposta será, com certeza, surpreendente. Não queremos dizer com isso que, para certos grupos, a vida é pior ou melhor que para outros, apenas diferente, o que exige, talvez, mais consciência e aceitação sobre sua própria condição.

“Desde pequenas, começam a perceber que não estão em um bom encontro em relação ao que é estabelecido. (…) exclusão da travesti já começa na família, justamente por não se adequarem as regras sociais. Podem até mesmo sofrer violência por parte de seus familiares”, afirma Antunes.

Todo ponto fora da curva foge ao esperado, ao padrão pré-estabelecido daquilo que julgamos

“correto e aceitável”. Não há como evitar essa reação geral. Talvez a família seja a primeira a se defrontar com uma “condição diferente”, a primeira a julgar, a primeira a condenar e a primeira a representar os muitos carrascos que surgirão pela vida afora, numa trajetória marcada por constantes enfrentamentos, sucessos e derrotas.

Na escala do envelhecimento, “o próximo desafio vem na escola”, alerta Antunes. E os “diferentes” aparecem como imensos transgressores: “O nome social que elas desejam usar combinado com a aparência são ele­mentos para que sejam rechaçadas na escola, tanto pelos colegas como professores e demais funcionários. Muitas relatam que por causa disso, não conseguem terminar os estudos”.

Não ter as mesmas oportunidades dos ditos seres “padronizados”, é a mais ultrajante forma de punição; covarde e desrespeitosa. Mas como evitar que tal exclusão não ocorra? É como lutar contra um batalhão de Titãs?

No filme “Ma vie em rose” de 1997, um menino bastante retraído decide se vestir apenas como menina, causando um grande furor na pequena cidade onde mora. Sua família deve então viver com a possibilidade de que ele seja “gay” ou “diferente” e deve superar todos os transtornos que a situação gera, na escola, na família e no social.

Antunes continua a trajetória: “Ao mesmo tempo, saem de casa ou são expulsas, encontrando nas travestis mais velhas a referência para construir seu modo próprio de ser. Travestis mais experientes terão um papel importante na vida das mais novas. Ajudarão a construir os novos corpos, estilos de vestir e formas de ser das novas travestis”.

“A condição de seres patológicos que são colocadas facilita que a sociedade não as veja como humanas e sim como seres abjetas. Em sua maioria, são consideradas aberrações, sujeitas a tratamento, punição ou até mesmo extermínio. Desde cedo seu drama como não humanas já começa e se arrasta até quando conseguirem sobreviver”.

Viver pode ser considerada uma tarefa das mais complexas, mas para esses “seres” julgados e constantemente ameaçados, ousamos afirmar que a luta é das mais sangrentas e corajosas. Para quem assistiu ao fantástico “Albert Nobbs”, na majestosa e, ao mesmo tempo, sincera e discreta interpretação de Glenn Close, entende o verdadeiro significado do termo “ser abjeto”.

Mas há que sobreviver, mesmo enfrentando Monstros “Humanos”, Titãs e afins. Antunes explica: “As que conseguiram driblar os riscos inerentes ao con­texto existencial de marginalidade, precisam adotar estratégias. Para isso, seguem um estilo próprio de exis­tir. Não há como generalizar sua forma de lidar com as adversidades da vida. Cada uma terá seu jeito próprio. Além de ter sobrevivido, chegar à velhice é também sinônimo de referência, exemplo e alerta para as mais jovens”.

A experiência adquirida através das “mais velhas” serve como uma espécie de guia para a vida. A isso acrescenta-se a forma individual que cada uma vê, compreende e enfrenta as adversidades impostas pelo meio e por ela mesma. O resultado será próprio, sofrido e em muitos ou alguns casos, vitorioso.

Travestis de hoje, de ontem…

Numa reflexão sobre o que foi ser uma travesti antes e o que significa e representa ser uma travesti hoje, Antunes recorre à história: “Ser travesti na atualidade não é o mesmo que ter sido travesti antes da década de 1960. Se um homem saísse na rua vestido de mulher, geralmente era preso. Não havia hormônios nem silicone. Porém, mesmo assim, muitas podiam ser travestis durante os bailes de carnaval. Outras se tornavam artistas, o que possibilitava que pudessem ser mais travestis em um contexto de artes cênicas. As prostituições eram veladas e sutis, conforme acompanhamos nos relatos de vida de duas de nossas entrevistadas”.

“Após as revoluções sexuais ocorridas no final do século XX no mundo, os conceitos de família e gênero sofreram profundas transformações. A travesti passou a ter mais espaço. Saiu da clandestinidade e começou a se prostituir nas ruas dos grandes centros urbanos. Assim como os jogadores de futebol, muitas saíram de contextos socioeconômicos mais humildes. Como prostitutas, galgaram espaço nos grandes centros até chegarem ao exterior. Lá, precisavam ganhar muito dinheiro em curto espaço de tempo, para que pudessem ter um futuro”.

“Quando não pudessem mais viver do corpo, já seriam consideradas velhas. Para as travestis o conceito de velhice está vinculado ao trabalho que desempenham como prostitutas. Enquanto trabalham são úteis, produtivas e, portanto jovens”.

Quantas vezes ainda teremos que pensar em produtividade relacionada a juventude? Ou viver sob a tirania da juventude eterna?

Será que estamos próximos de uma condição diferente da que vivemos atualmente? Será possível, um dia, nos vermos como iguais, como pontos próximos da curva da vida?

“Conhecer suas trajetórias de vida possibilita identifi­car quais são os pontos mais críticos onde não há qualquer amparo existencial. Elas são grandes improvisadoras, visto que não são reconhecidas como pessoas humanas. Precisam inventar suas vidas de forma original. Como não “existem” perante a lei, estão sujeitas a todo tipo de violência e aniquilamento. Quem as defenderá?”

 

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