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Inspirado em Madame Satã, peça fala sobre luxúria, racismo e LGBTFOBIA
   21 de março de 2022   │     7:55  │  0

Madame” é o novo espetáculo teatral assinado pelo dramaturgo Márcio Telles, da Companhia Odara, com direção de Marcelo Drummond. O monólogo tem o próprio Márcio interpretando Madame, figura emblemática que ora está com vestidos, lenços e maquiagem, ora traz para o palco a malandragem e mandinga do famoso capoeirista boêmio, Madame Satã (1900-1976).

O conjunto dessas personas resulta em uma figura emblemática, arisca e cheia de contradições que utiliza de seu cabaré para promover a insurgência da arte considerada “marginal” e a contestação sócio-política de camadas excluídas e preteridas socialmente.

“Dentro da minha trajetória no Oficina, ao longo das turnês dos diferentes espetáculos sempre fazíamos uma confraternização da trupe em um dos quartos dos hotéis onde ficávamos hospedados. Nessas ocasiões eu acabei criando a Madame. Isso acabou pegando e, ao final de cada apresentação, atores e técnicos já perguntavam ‘onde vai ser a festa hoje, Madame? Qual o repertório de hoje, Madame?’ Dentro desse contexto eu transitava muito com o duplo, com o espelho, o gênero. Não à toa, há seis anos tenho um trabalho na Casa Florescer dando aula de interpretação para meninas e mulheres trans que são assistidas”, afirma Telles.

No enredo da peça, Madame ocupa esse terreiro eletrônico que é o Oficina, de forma não linear, transformando-o nesse cabaré que acolhe a luxúria e a cena boêmia, além de reverberar a voz de contestações sociais como o racismo, a LGBTfobia, a intolerância religiosa e a identidade de gênero.

Em sua concepção, Madame Satã é uma figura em transformação contínua que troca de figurino como quem troca de pele, a serpente do arco-íris de Oxumarê. O Ouroboros que pica com seu veneno e também transmuta para a cura. Entre sombras e luzes, Madame envolve o público com seus enredos, sotaques e mandingas, percorrendo caminhos circulares e ancestrais das encruzilhadas, madrugadas, terreiros de candomblés e a apoteose do Carnaval. O sagrado e o profano juntos para celebrar narrativas de resistência.

“Em 2010, durante um ano de temporada com peças do Oficina, começamos a construir as camadas desse personagem que agregava todo o elenco e quando voltamos para São Paulo encarávamos esse personagem, quase uma entidade nas festas do terreiro que o Márcio dirige. O interessante é que quando resolvemos montar o monólogo, não precisamos de muitos ensaios, pois o Márcio já tinha tomado posse desses sotaques de Madame. Só cabia arrumar luz, o tempo das coisas. O próprio Oficina tem o lema de dizer que não somos corpos físicos, somos corpos mutáveis. Essa montagem ilustra bem esse pensamento”, diz Drummond.

SERVIÇO:

  • Datas: 14 de março a 28 de março
  • Local: Teatro Oficina, Rua Jaceguai, 520 – Bixiga
  • Quando: Segundas-feiras, às 21h00
  • Duração: 90 minutos
  • Classificação indicativa: 14 anos
  • Valor: 50,00 inteira – 25,00 meia
  • Link para compra de ingressos: https://bileto.sympla.com.br/event/71980

FICHA TÉCNICA:

  • Autoria e atuação: Márcio Telles
  • Direção: Marcelo Drummond
  • Produção executiva: Diego Dionísio
  • Direção de Cena: Elisete Jeremias
  • Cenografia: Tádito Produção
  • Assistente de Produção: Anderson Vaz e Robson Silva
  • Direção musical: Ito Alves
  • Preparação Vocal: Rafaela Romam
  • Piano: Rodrigo Jubeline
  • Percussão: André Santana
  • Iluminação: Luana Della Crist e Pedro Felizes
  • Assessoria de Imprensa: Baobá Comunicação, Cultura e Conteúdo
  • Imagem: Jennifer Glass

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O Alma Preta separou depoimentos relacionados às diversas formas de demonstração e sensação de afetividade da população negra. Neste texto, Marco Antonio Fera fala sobre a invisibilidade da pessoa negra e homossexual

Licença, Davis, King, Malcoln, Conceição Evaristo
Hoje quero falar de mim, de feridas, de dor
Falar de ser, do ser negro, do ser homem, do ser gay, de ser só…
Licença, Cesaire, Mahin, Abdias, Lélia Gonzalez
Corpo negro, em mundo branco.
No momento do flerte ouvi: – você é exótico, diferente, interessante.
– Mito ou verdade, é tudo aquilo que dizem?
Colocam a mão no meu cabelo, para sentir a tessitura, riem
Passam a mão na minha pele, para sentir a textura, fazem troça
Como crer ser digno de amor e afeto?
Como superar a auto-ódio e a baixa autoestima?
Sempre acreditei que eu não merecia o amor!
Corpo negro em um mundo branco.

A escola, ambiente castrador, movimento alienatário
Hormônios à flor da pele, descobertas, medo e violência
Que queria ser inserido, fazer parte da massa
Minhas condições faziam estar à parte
Estando à margem, marginalizado está
Eu, o resto, a sobra, o que não dava encaixe, o excesso
Sozinho estará
Não compreendia o processo
A dinâmica é sempre “clara”, “alva”, branca
Sozinho estará
Os pares se formam,
Meninos gays se amando
Os discretos, os foras do meio, os “brother”, claro
E eu à espreita, sempre esperando
De fora, assistindo, plateia
De vítima, me sobrecai a culpa
Culpa de minhas atitudes inadequadas
A culpa de meu pessimismo negro
A culpa de meus “mimimis”
Inversão de papéis, valores, repentinamente
– Não procura que você acha
– Se acalma que o amor vem
– Ainda bem que você não namora, é só dor de cabeça
A experiência dessa dor de cabeça eu quero ter
Precisei crescer amadurecer
Precisei tornar-me negro, enegrecer-me
Imbuído da consciência negra
Observando o meu rosto refletido no espelho
Ao som da voz rasgada de Elza Soares, compreendi
– A carne mais barata do mercado é a carne negra!
Entendi que o racismo, o sexismo e a branquitude
Operam de forma sistemática em minha existência
Em cada movimento do meu corpo e em cada espaço que ele ocupa
Não aceito mais o lugar do
– Negão.
Negão não.
Jamais, nunca, jamé.

E foram tantas aflições na busca incessante pelo amor
Amor aquele, que nos entende,
Aquele que nos manda bom dia no Whats às 6h da matina
Aquele que arranca da gente o melhor sorriso
Aquele que, a caminho do Aparelha Luzia,
Te solta o verso de Liniker – “deixa eu bagunçar você”
Mas, como projetar o amor em uma comunidade que vive o cárcere da heteronormatividade?
Pra viver o amor gay, é preciso preencher pré-requisitos de corporalidades
Para conviver em espaços homo afetivos para além de ser branco, é necessário
Virilidade, masculinidade e performar heteronormativamente
Sendo homem negro então!
Voltamos ao negão?
Acho que antes do amor, eu quero descobrir onde está a humanização do corpo negro masculino…
Eu sou homem ou eu sou máquina?
Eu estou vivendo ou estou a serviço?
Na realidade, eu estou caindo e levantando a cada dia
Vivendo a complexidade da infinita descoberta
Me entendendo homem
Me entendendo negro
Me entendendo gay
Me entendendo belo
Me entendendo forte
Me entendendo…
No meio deste emaranhado de compreensões eu fraquejo
Mas me fortaleço
Descortinar-se é complexo, abrem-se fendas
Criam-se cascas, acontecem rupturas
Mas é preciso, é necessário
Estou vivendo cada dia, desabrochando, caindo, levantando, em busca de mim
Em busca do amor.

Texto / Marco Antonio Fera
Imagem / Pexels