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A triste realidade da população LGBT em situação de rua
   13 de janeiro de 2016   │     14:06  │  1

população LGBT que vive em situação de rua no Brasil sofre ainda mais violência e discriminação do que os demais sem moradia no país, foi o que concluiu o sacerdote católico Júlio Lancellotti, monsenhor e pároco da Igreja Miguel Arcanjo, na cidade de São Paulo.

O padre é também pedagogo e teólogo, doutor Honoris Causa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e dedica grande parte de sua atuação ao trabalho social, especialmente junto a crianças e adolescentes infratores, detentos em liberdade assistida, pacientes soropositivos, populações de baixa renda e em situação de rua, como coordenador da Pastoral da População de Rua em São Paulo.

Segundo ele, além da exclusão por parte da família, amigos, mercado de trabalho e Poder Público, a população LGBT é rebaixada hierarquicamente nas ruas, chegando a ser subordinadas por outros sem-tetos.

O padre conversou com a agência de notícias Adital a respeito dos abrigos destinados a população LGBT que vive nas ruas, a omissão da mídia na cobertura dessa questão social, e os desafios e avanços frentes as políticas públicas de direitos humanos aos LGBT sem situação de rua.

Como avalia a situação da população LGBT que vive nas ruas do Brasil?

A situação da população de rua LGBT é a mesma que toda a população LGBT vive no Brasil, agravada pela exposição na rua, sofrendo violência e discriminação potencializada. Sem nenhuma proteção, sofrem ainda mais da repressão das polícias. Nem sempre encontram proteção, apoio e autonomia. Posso falar a partir da população LGBT que vive na cidade de São Paulo, que eu conheço mais. Há peculiaridades em várias cidades do Brasil. Essa população é facilmente identificável. A discriminação e o preconceito crescem pelas circunstâncias de vida deles, e acabam sendo extremamente feridos, sofridos e discriminados.

Quais os desafios enfrentados por essas pessoas? Houve avanços nos direitos humanos dos sem-teto LGBT?

Enfrentam desafios comuns à população de rua, mais o preconceito e discriminação, assédio e até a necessidade de prostituírem-se, doenças, abandono e imensa carência afetiva, e busca de proteção. Existem questões específicas, de sobrevivência. Questões específicas da área de saúde, dos atendimentos. Há algumas tentativas, como em São Paulo, onde se fez um centro de acolhida específico para eles. A grande pergunta é: não deveriam estar integrados em todos os espaços, aprenderem a lidar, aceitar e conviver, sem que sejam massacradas? Tem que ter um espaço onde tenha um banheiro que eles possam usar ou em todo lugar tem que ter um banheiro para eles?

Como os governos têm lidado com as pessoas em situação de rua e, em especial, com os LGBT?

Existem leis, propostas, mas, em geral, impositivas e verticais. Há muita pressão e programas sucateados e improvisados. Nos momentos de crise como agora, são os primeiros afetados. O grupo LGBT recebe respostas parciais e não atingem todos. Como esse espaço específico, mas que tem várias outras questões. Por que eles ficam no centro de acolhida? Como eles podem ter acesso à questão da moradia e serem respeitados?

É possível identificar pontos em comum nas histórias do LGBT em situação de rua? Como foram parar nessa condição?

A população de rua reproduz os mesmos preconceitos, rejeita e estabelece relações afetivas. Tem o conflito com a família, com a comunidade local. E uma coisa que me chama muito a atenção: os conflitos religiosos. De igrejas que não aceitam algumas denominações, que os acaba expulsando do convívio religioso. Esses grupos, em geral, são famílias também, que, por causa da situação religiosa, são intolerantes e não aceitam, de forma alguma, a convivência. Querem que as pessoas mudem. Esses que estão na rua são os que assumem sua condição, vivem sua condição e acabam ficando na rua, porque não têm nenhum espaço social de acolhimento.

Eu me lembro muito bem de um jovem que estava me dizendo do conflito que ele tinha com o pai, no grupo da igreja, e eu perguntei para ele: “quem é que te aceita, dá carinho e gosta de você?”. E ele disse: “Minha avó”. “Como tua avó te trata?”. “Me dá carinho, me agrada, me dá comida, quer que eu vá para a casa dela, tomar banho. Tem compaixão pelo meu sofrimento, é muito afetuosa comigo”. Eu disse: “Deus te ama como a sua avó”. Então, ele ficou muito surpreendido. “Deus me ama? Por que ele me fez mulher num corpo de homem?”. Então, são conflitos muito fortes. É uma questão existencial, dentro do simbolismo das questões sociais. Isso se agrava e agudiza, jogando essas pessoas nas ruas.

Qual sua avaliação sobre a relação da mídia com o povo em situação de rua? Qual a imagem disseminada?

A relação com a mídia é conflitiva, espetacular e de não entendimento do mundo da rua e suas consequências. Na maior parte das vezes, é um interesse factual, um interesse episódico. Não tem nenhum interesse existencial, nenhum processo de vida dessas pessoas. É como tudo: uma pessoa foi queimada, então, isto é notícia; se ela achou uma carteira, isto é notícia. É sempre nesse mundo do consumo. Consumo das pessoas e das notícias. Todas as discussões são imediatistas, pragmáticas e de consumo.

Como a sociedade se relaciona com o povo em situação de rua?

Que sociedade? Eles não fazem parte desta tão falada sociedade. Há uma dissociação do real, do que é simbolizado, na medida em que se quer vender a imagem de uma pessoa inofensiva, um “coitadinho”. E essas pessoas carregam também contradições, desejos, buscas, revoltas. Eles são quase pasteurizados. Eles são marcados pela mídia, pelo consumismo. As relações reais são muito conflitivas. Às vezes, a mídia passa uma visão idealizada.

O senhor já comentou que estamos vivendo uma sociedade “cachorrocêntrica”. O que seria isto?

É a cultura do cachorro, do petshop. São Paulo tem 4 mil padarias e 4 mil pets. Fome de pão e carência de cão. O que é interessante nisto: o povo da rua tem uma relação muito forte com os cachorros. E os cachorros são mais bem cuidados do que eles. Tem gente que dá comida para a população de rua e tem gente que leva comida para os cachorros. E tem gente que visita a população de rua por causa dos cachorros. Coloca-se o cachorro como centro, porque ele retribui o afeto, o cuidado, e a população de rua é mais contraditória, nem sempre retribui, como o cachorro.

O que significa uma gestão caracterizada por ações higienistas?

É aquela ação que quer eliminar a pobreza eliminando os pobres. Tratando-os como lixo e resíduos. Essas ações higienistas são muito presentes aqui em São Paulo. Na praça 14 Bis houve uma ação truculenta do “rapa” [fiscais]. As pessoas estavam celebrando uma missa e começaram a retirar as coisas das pessoas. Pedi: “Parem de fazer isso! Sejam vocês evangélicos, católicos, espíritas, mulçumanos, judeus, budistas, ateus, agnósticos… Sejam humanos, parem de tirar as coisas dos irmãos de rua! Isso é uma questão de humanidade!”. Estava frio, garoando. Eles não puderam carregar seus objetos. O que a polícia diz? “Sumam. Armem sua barraquinha diante da assistência social”. Não importa para onde vão. A Polícia Militar também está dizendo que vai plantar drogas e forjar flagrantes. A ação da Prefeitura é extremamente higienista.

Em declarações, o senhor comentou que o Censo da População de Rua de São Paulo “é uma fantasia”. Por quê?

Porque não conseguiu realizar o que anuncia: contar toda a população de rua da cidade. Não levou em conta os que estão em entidades não conveniadas, como a Missão Belém, e usou o mesmo conceito de população de rua do Censo de 2000, por questão técnica, e não atualizou o conceito frente à realidade, que mudou. O Censo não levou em conta quem está em barraco, só quem está em barraca, considerando o primeiro favelização. Há lugares que, sabemos, não são caracterizados como favelas. Aí, a Assistência Social diz que isso é problema da Habitação. E também não contaram os que estão em entidades religiosas, ou em hospitais e clínicas.

Como avalia os abrigos destinados aos LGBT, a exemplo do Centro de Acolhida Zaki Narchi, em São Paulo?

Foi uma tentativa de mascarar a realidade em cima de uma resposta gasta e inadequada de “albergue”, porque não tem autonomia para uma moradia com dignidade. É aquilo que te disse: é mais fácil fazer um lugar específico do que fazer com que essas pessoas possam conviver. Eles não têm uma escola específica, um hospital específico. Pode ser uma resposta momentânea. Um exemplo bom disso são as Olimpíadas, que é um evento extremamente competitivo. Por isso é que há as Olimpíadas dos deficientes. Eles são tão atletas quando os outros, mas têm de fazer Olimpíadas diferentes dos outros.

O que representou o lava-pés da atriz Viviany Beleboni, que sofreu ameaças por ter participado da 19ª Parada do Orgulho LGBT, pregada numa cruz, na capital paulista?

Misericórdia e pedido de perdão, acolhimento sem julgamento, vivência radical do seguimento de Jesus. A pergunta é? Jesus a acolheria ou não? Lavaria seus pés ou a rejeitaria? Fizeram um barulho enorme em cima de uma coisa… Vemos crucificação dos camponeses, meninos de rua, pessoas negras, indígenas… A intolerância é porque é uma transexual. Ela se identificou com a dor de Cristo e outros se identificaram com a dor dela.

Jesus morreu por nós, todos pecadores. Jesus não morreu por uma categoria vip ou de exclusividade. Seu amor é para todo mundo, para os transexuais também. Lavar os pés foi um gesto que Jesus fez com aqueles que eram seus discípulos, que o abandonaram, o traíram ou o negaram. Os primeiros que devem ser respeitados são aqueles que são discriminados e tratados de maneira cruel. A minha pergunta é sempre esta: Jesus lavaria os pés dela? A trataria com misericórdia e compaixão? Aí as pessoas me perguntam: mas ela trataria com respeito a religião? Esta é uma pergunta que Jesus nunca fez.

Que contribuições o Papa Francisco tem trazido para a luta do povo em situação de rua?

Na medida em que age, dá exemplo ao Vaticano, acolhendo os moradores de rua, na visão geral do sistema, que descarta, e na sua transformação. Na defesa dos pobres e esquecidos. Eu acredito que a mensagem do Papa Francisco contribui muito para os movimentos sociais na Bolívia, a partir dos três T: teto, trabalho e terra. Isto está extremamente ligado à população que vive nas ruas, que precisa de trabalho, teto e terra. Eu colocaria ainda um quarto T: ternura. O Papa Francisco tem dito muito isto: não tenham medo da ternura.

Ao longo dos 30 anos de sacerdócio, o senhor já foi perseguido, ameaçado, processado, viveu momentos de tensão com a polícia. Como avalia sua trajetória?

Dura, cheia de momentos desafiadores e consoladores. Feliz por ser amigo dos mais pobres e aviltados, de ser amado por aqueles que ninguém ama. É uma luta pela vida, uma luta de resistência, um combate diante de situações que querem destruir os fracos, os pequenos. Hoje em dia, a intolerância, o preconceito e a raiva é cada vez maior. Existe muita solidariedade, mas existe muito ódio também.

Deseja acrescentar algo mais?

Que na velhice faço memória de tudo o que vivi, com marcas e cicatrizes, muitas imagens de ternura, muitas saudades dos que amei, com força para resistir e insistir, e não aceitar que os pequenos sejam pisados.

Entrevista publicada pela agência Adital

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