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Heterossexualidade compulsória obriga LGBTs a seguirem padrões hétero-cis
   9 de novembro de 2022   │     12:00  │  0

A falta de representatividade e a pressão para que os indivíduos estejam de acordo as expectativas cis-hétero normativas desencadeiam conflitos internos durante o processo de autoaceitação de pessoas LGBTQIAP+

Estar em  desacordo com as normas hétero-cis normativas fomentadas pela sociedade em todos os âmbitos sociais é uma das principais fontes de  conflitos internos e externos de quem faz parte da comunidade LGBTQIAP+. Independentemente da idade e da fase da vida em que o indivíduo se descobre, a  pressão para se encaixar no padrão exposto o atinge de maneira inevitável.

É dessa imposição que nasceu o termo “heterossexualidade compulsória”, definido pelo psicoterapeuta  Adilon Harley como “uma ferramenta para tentar garantir a estrutura patriarcal de poder”. De acordo com ele, isso afeta diretamente as pessoas LGBTQIAP+, mas principalmente as mulheres cis, uma vez que essa heterossexualidade compulsória reafirma valores e comportamentos nocivos em qualquer relação humana. “Ela [heterossexualidade compulsória] é um instrumento de poder que cada vez mais perde o sentido e que está reativo justamente pela percepção coletiva da falência desse modelo”, afirma.

Em todos os lados, as referências recebidas pelos indivíduos em questão de gênero e sexualidade são sempre heterossexuais e cisgênero, vistos como a “ordem natural das coisas”. Nadar contra essa maré, por assim dizer, exige muito esforço e, na grande maioria das vezes, é um processo longo, como conta Hanna Vinagre, estudante de letras e mulher cis lésbica.

“Gostei de uma menina pela primeira vez aos 13 anos, ela era uma das minhas melhores amigas da época. Por ter vindo de uma criação católica, na minha cabeça o certo sempre foi conhecer um homem, casar e ter filhos, então me deparar com uma situação na qual eu não conseguia me interessar por nenhum garoto e seguia sentindo um ciúme ‘irracional’ pela minha melhor amiga foi confuso e difícil de perceber. A junção da influência católica, familiar e social resultou numa pressão que criei em mim mesma para me convencer de que era uma mulher heterossexual”, relata.

As influências externas, como os estereótipos de masculinidade e feminilidade e a reprodução de ideias como “homens gostam de mulheres” e “mulheres gostam de homens”, são alguns exemplos de como funciona a heterossexualidade compulsória: os indivíduos crescem recebendo referências hétero-cis, que são totalmente difundidas e naturalizadas em todos os meios, então o contato com qualquer aspecto que fuja desse padrão desencadeia um processo de autoconhecimento denso e complexo.

Jaqueline Bifano , psiquiatra da infância e adolescência, diz que pessoas LGBTQIAP+ costumam ter vários conflitos e “uma sensação de passar anos de vida tentando ser alguém que ‘não se é’, com um preconceito internalizado no próprio indivíduo que se traduz, muitas vezes, em adoecimento”. Ela acrescenta ainda que “existe  um pressão para a cultura do cis-hétero que geram violência e os conflitos relacionados à aceitação familiar e social causam uma confusão emocional angustiante”.

Laura Arcanjo, mulher cis lésbica, estudante de jornalismo e estagiária de comunicação interna na Bridgestone Brasil, conta que desde muito nova se sentia atraída por mulheres e, na adolescência, devido à cobrança externa para que encontrasse um namorado, chegou a envolver-se com um amigo, ainda que não sentisse atração por ele.

“Eu aproveitei o sentimento de amizade que existia entre nós para tentar engatar uma relação romântica, mas não sentia vontade de beijá-lo ou de estar ao lado dele como casal”, explica. “Eu não era atraída por homens, porém não conseguia aceitar isso. Ficava sem saber o que fazer e hoje vejo como a heterossexualidade compulsória me obrigava a estar dentro de um padrão heteronormativo”.

Adilon esclarece que a pressão para que os indivíduos estejam dentro da norma cis-hétero faz com que pessoas LGBTQIAP+ criem alguns mecanismos de defesa e desenvolvam o famoso processo de negação.

“Dois mecanismos de defesa muito comuns nesses casos são a repressão do sentimento ou a reprodução do comportamento combativo. Em ambos os casos, a pessoa experimentará uma angústia muito grande. A negação esconde o desejo reprimido que não pode ser revelado. Não há espaço para os desejos em uma sociedade patriarcal, eles são construídos ao redor da ideia da cis-heteronormatividade masculina. Entrar em contato com estes desejos ainda precocemente, transmite a ideia de defeito, doença, pecado. Quanto maior a possibilidade de negar, maior a chance de domar estes desejos”, pontua.

A psicóloga clínica  Mônica Mafra ressalta ainda que são muitos os obstáculos que a população LGBT precisa enfrentar por ser quem é, então os conflitos internos e externos acabam potencializados.

“Imagine sentir-se discriminado, avaliado e alvo de piadas. Sofrer preconceitos provoca dor, medo e tristeza. Há uma violência dirigida às pessoas por causa da sexualidade e identidade de gênero delas, que pode ser psicológica e até física. A ferramenta que a heterossexualidade compulsória usa é a ideia de uma suposta ‘patologia da sexualidade’. Avalio que é uma forma de opressão, de controle e de exclusão”, diz.

Falta de representatividade 

Quando Alex de Araújo Pereira, estudante, viu uma pessoa trans em TV aberta pela primeira vez, em 2017, se identificou com o personagem, mas não bastou para que se sentisse totalmente representado e compreendesse a identidade dele, mesmo que o reconhecimento da não conformidade com o gênero que lhe foi imposto ao nascimento existisse desde cedo.

“Eu não sei ao certo quando eu aceitei que isso era normal, mas desde que eu me lembro, quando tinha uns 12 anos, eu já tinha noção de que gostava de pessoas e não de gêneros, porém sempre me julgavam, como se aquilo fosse errado. Inclusive foi uma das razões para eu demorar a me descobrir não-binário”, explica.

Essa representatividade ainda precária e, em muitos âmbitos, praticamente inexistente, dá mais espaço para que a pressão da cis-hétero normatividade se intensifique e os indivíduos sejam distanciados das referências que mais se aproximam às próprias vivências. Para Hanna, a falta de representatividade resulta na falta de apoio durante a formação da identidade pessoal.

“Desde criança, nós assistimos a programas de televisão e lemos gibis e livros escolhendo como favoritos os personagens que se parecem conosco. Essa escolha, que pode parecer inocente, é na verdade algo que nos ajuda a moldar a nossa personalidade e vislumbrar possibilidades de existência. Então, sendo uma pessoa que cresceu com pouquíssimas referências, vejo como isso atrapalhou meu desenvolvimento como pessoa. Eu era uma menina descobrindo sentir atração por outras meninas, mas quem são essas pessoas que nunca vi antes?”, explica.

Laura conta que só conseguiu se entender melhor e iniciar um processo de autoaceitação quando entrou na faculdade, onde teve contato com outras pessoas da comunidade LGBT que também passavam por um processo de aceitação ou que já se aceitavam totalmente. Elas compartilhavam experiências, além de debates e palestras relacionadas ao tema.

“Representatividade é muito diferente de influência. Estar em contato com essas discussões mostra que as pautas LGBT não são um ‘bicho de sete cabeças’, nos ajuda a desmistificar muitos mitos e dão apoio no processo de aceitação. Eu não tinha tido contato com essas questões até então e ter conhecimento sobre a minha sexualidade e não ser capaz de me aceitar foi devastador. Conseguir falar sobre isso me ajudou muito e, após todos esse processo de autoaceitação, me sinto muito melhor comigo mesma.”

Adilon esclarece que a representatividade permite que pessoas LGBTQIAP+, além de terem maiores referências, possam sentir-se livres para vivenciar a sexualidade e a identidade delas, uma vez que o “se descobrir” torna-se muito mais natural quando já se tem contato com essas possibilidades.

“A representatividade diminui a sensação de ausência, permite que projeções positivas sejam realizadas e que os sentimentos e desejos tenham ressonância em algo que existe. Ela é responsável pela criação de uma nova consciência coletiva, pois não atinge apenas as pessoas LGBTQIAP+; ela reverbera nas estruturas sociais, permitindo questionamentos e a construção de um novo ser e estar no mundo”, conclui.

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Estudo relata repressão a índios gays no Brasil
   30 de abril de 2018   │     0:32  │  0

  • O processo de colonização brasileira envolveu o controle da sexualidade indígena. A tentativa de coibir relações homossexuais nas aldeias, vistas pela Coroa portuguesa como “um espaço amplo para a ação do demônio”, foi pretexto para a violência que reforça até hoje a exclusão de índios gays.
  • A Pesquisa feita pelos antropólogos Estevão Fernandes e Barbara Arisi e publicada em 2017  leva a discussão sobre gênero e sexualidade para a realidade dos índios gays no Brasil.
  • Segundo Fernandes, desde o século 16 há registros de práticas homossexuais entre diversas etnias indígenas. “Os relatos não eram do próprio indígena, mas do não indígena tentando salvá-lo. O papel fundamental da colonização é salvar o colonizado de ser quem é.”

    Fernandes diz que os índios eram considerados sodomitas, o que serviu como justificativa para as ações dos jesuítas, que teriam utilizado violência física com “requintes de crueldade”.

    Ainda que os próprios portugueses também fossem vítimas da Inquisição, o antropólogo defende que os índios sofriam antes por serem indígenas e depois por serem gays. “O português tinha direito à defesa, sabia se comunicar na própria língua. O indígena não. Era uma perseguição mais ostensiva pelo tipo de controle que se exercia sobre a vida cotidiana.”

    Arisi concorda que os indígenas sofrem um preconceito “somado”. “Eles vão ser atacados por serem considerados sodomitas, mas isso se soma ao lugar da subalternidade por serem índios.”

    Para os pesquisadores, a consequência disso foi um vácuo de pertencimento que permanece hoje. “O cara que é indígena e LGBT não tem espaço em nenhum dos dois grupos. Qual o lugar reservado para o homossexual historicamente? Nenhum. Agora, imagina o indígena.”

    “O colonialismo não acabou e, em larga medida, o discurso homofóbico e racista permanece. A cura gay não é coisa de cinco séculos atrás, é coisa de hoje. A retórica é a mesma. Vemos pastores super bem intencionados tentando salvar a alma das pessoas”, afirma Fernandes. “Nossa conclusão é dizer que isso molda o Brasil.”

    SOB CONTROLE

    Não somente a homossexualidade era punida. A pesquisa também mostra relatos condenando a amamentação prolongada, comportamentos que fugissem dos papéis historicamente encarregados ao homem e à mulher e o excesso de bebida alcoólica. O estupro das indígenas, entretanto, era prática usual e permitida entre os europeus.

    A pesquisa conta, inclusive, com o relato de um estupro perpetrado por um navegador italiano, amigo de Cristóvão Colombo, em carta enviada em 1495. “Tendo capturado uma indígena muito bonita, nua como de costume, tive desejo de satisfazer meu prazer […] ela se recusou e me arranhou […] peguei uma corda e lhe dei uma surra tão boa […] Finalmente, chegamos a um acordo e posso te dizer que ela parecia ter sido educada em uma escola de prostitutas.”

    Arisi defende que o controle dos corpos indígenas teve a finalidade de compor a “construção nacional” de um Brasil imaginado pelos que estavam no poder. Como diz a pesquisa, a Coroa queria que o índio fizesse parte do sistema econômico como um homem civilizado, católico, heterossexual e monogâmico.

    Segundo Arisi, o processo colonial segue em prática “tentando aniquilar os indígenas para virarem essa ideia imaginada do que é uma nação brasileira”. Para ela, há um investimento do governo –”e nos governos de esquerda não foi diferente”– de transformar o índio em um brasileiro.

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