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A homossexualidade na vida e na obra de Carlos Drummond de Andrade
   29 de julho de 2015   │     0:00  │  0

Van Gogh Museum/Associated Press

Van Gogh Museum/Associated Press

Num domingo, dia 13 de maio de 1984, o médico e escritor mineiro Pedro Nava (1903-84) recebeu uma ligação telefônica por volta das dez horas da noite. Quem atendeu foi sua mulher, Antonieta, que identificou uma voz masculina e passou o aparelho ao escritor. Nava tinha 80 anos e, quando desligou, estava transtornado. Disse que nunca ouvira “nada tão aviltante”. Retirou às escondidas uma pistola da gaveta e saiu pela porta dos fundos do apartamento. Duas horas depois, se matou com um tiro na cabeça, sentado num banco em frente à sua casa, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro.

Na época, os jornais foram informados de que Nava cometera suicídio após ter sido chantageado por um garoto de programa que ameaçava revelar sua bissexualidade. O suposto chantagista foi localizado, mas toda a imprensa silenciou sobre a origem da tragédia, só revelada anos depois. O que estava em jogo era a honra de um homem que deu cabo da própria vida para não ficar associado a um comportamento que feria os padrões morais do seu grupo. Um ato que mostra o lugar que a homossexualidade ocupava naquele ambiente.

A morte do escritor foi um golpe duro para o amigo Carlos Drummond de Andrade (1902-87), que em sua homenagem escreveu o poema “A Um Ausente”.

“Sim, acuso-te porque fizeste/ o não previsto nas leis da amizade e da natureza/ nem nos deixaste sequer o direito de indagar/ porque o fizeste, porque te foste.”

MUDANÇAS

O suicídio também ocorreu num momento crítico de tensão entre gays e a sociedade brasileira. Na primeira metade dos anos 1980, houve uma série de conquistas da comunidade homossexual, como o estabelecimento de um Dia do Orgulho Gay e a decisão do Conselho Federal de Medicina de retirar a homossexualidade da classificação de doenças.

Esta conjuntura pode ter sido o estopim para que Drummond exibisse, pela primeira vez, e de maneira direta e virulenta, seus sentimentos em relação ao tema. Exatamente um mês depois da morte do amigo, deu uma entrevista à doutoranda em comunicação Maria Lúcia do Pazo, que fazia uma tese sobre a obra erótica do poeta. Entre outros assuntos, falou sobre gays: “Devo dizer que o homossexualismo sempre me causou certa repugnância, que se traduz pelo mal-estar. Nunca me senti à vontade diante de um homossexual. Com o tempo, havendo agora uma abertura imensa com relação ao desvio da homossexualidade, o homossexual não só ficou sendo uma pessoa com autorização para ir e vir como tal, mas chega a ponto de isto ser exaltado como riqueza de experiência, como acrescentamento da experiência masculina”.

No ano seguinte, Drummond voltou ao assunto, desta vez na revista “IstoÉ”. Em conversa com Humberto Werneck, reagiu à provocação do entrevistador: “É desvio, é um problema de ordem médica, que pode ser tratado ou não, pode ser remediado ou não, conforme condições peculiares do indivíduo. Não é aquilo que antigamente se chamava pecado. (…) Por mais que se façam essas experiências, a relação homem-mulher é ideal, é a mais perfeita do mundo, não tem substitutivo, não”.

Por esta declaração, o Grupo Gay da Bahia lhe enviou um abaixo-assinado, redigido pelo antropólogo Luiz Mott e manifestando repúdio ao discurso do poeta. “Lastimamos profundamente as declarações do nosso Poeta Maior”, dizia a missiva. “Não há perfeição em ser branco nem em ser preto. Essas coisas, tipo raça, religião, preferência sexual, são privativas de cada ser humano, nem aos poetas autorizando-se decretar onde está a perfeição.” A carta nunca mereceu resposta, mas Drummond a preservou em seu acervo pessoal.

NA POESIA

A revelação do ponto de vista do poeta tem especial significação à luz do que ele escreveu sobre o assunto. Em toda sua obra, Drummond tratou uma única vez da homossexualidade. O poema “Rapto”, publicado no livro “Claro Enigma” (leia abaixo), de 1951, apesar de exemplo isolado, é instigante na medida em que demonstra uma fratura entre as crenças morais do autor, reveladas nestas duas entrevistas, e a obra que ele produziu. Neste processo, o escritor sai engrandecido.

Drummond poderia ter fugido do tema que o incomodava ou, debruçando-se sobre ele, despejar seu sentimento de repulsa. O poema “Rapto”, no entanto, se não é absolutamente infenso à visão crítica de Drummond, não traz o tom acusatório que vaza de suas entrevistas.

Na mesma conversa com do Pazo, Drummond diz que fez em “Rapto” uma “operação puramente literária”. O tema da homossexualidade é resgatado no poema através de um mito grego: o episódio do sequestro de Ganimedes por Zeus.

Segundo a mitologia, Zeus se apaixonou por um belo adolescente chamado Ganimedes. Em algumas versões, o jovem aparece como um príncipe troiano, em outras, como um pastor de ovelhas. Atordoado com sua beleza, Zeus se transformou em águia, desceu do Olimpo, e raptou Ganimedes, possuindo-o em pleno voo. Em seguida, carregou o jovem ao céu e o converteu em seu amante e serviçal.

A imagem do mito é bastante simpática à causa, pois explica o mistério da homossexualidade como um chamado divino que acomete o adolescente desavisado. Ao longo da história da arte, esta cena foi utilizada repetidas vezes, na pintura ou na poesia, com uma tonalidade que varia de acordo com os padrões morais de cada autor.

Por volta de 1530, Michelangelo fez um desenho sobre o tema. O original se perdeu, mas existem pinturas de outros autores feitas a partir desse desenho. Na cena, o jovem Ganimedes aparece nu, com corpo robusto e uma capa nos ombros. A águia gigante agarra com firmeza suas duas pernas. Mas os braços do jovem enlaçam o pescoço e uma das asas da ave, e seu rosto a contempla com uma expressão de ternura. Nesta imagem, o rapaz elevado parece naturalmente corresponder ao desejo do deus.

Outra leitura do mesmo episódio, muito mais dura e crítica, foi feita por Rembrandt em 1635, num óleo que pertence ao acervo da Pinacoteca dos Mestres Antigos, de Dresden, na Alemanha. Na cena, Ganimedes não é representado por um jovem, mas por uma criança pequena. A águia aparece com um olhar ameaçador, segurando seu braço pelo bico, sob um céu de cor chumbo. A criança leva nas mãos um ramo de cerejas, que evidencia inocência, tem cara de choro e se urina de medo no ar. Este último detalhe dá ao quadro uma sensação absolutamente chocante pela violência perpetrada contra a criatura infantil, que será convertida em amante. Na poderosa leitura de Rembrandt, o sequestro de Ganimedes é um estupro.

Em sua versão na forma de poema, Drummond descreve a passagem mitológica, para em seguida transportá-la aos dias atuais, observando que este tipo de sequestro acontece agora na porta das boates. O que o diferencia das leituras anteriores é a indicação de uma postura a se adotar diante do rapto. Em sua parte final, o poema traz uma mensagem de aceitação e tolerância à diversidade.

Se este tipo de sequestro ocorre desde os tempos mitológicos, pressupõe Drummond, e se ele se repete nos dias de hoje, agora em casas noturnas, o que resta à sociedade é baixar os olhos diante de um desígnio da natureza. Drummond sugere um passo atrás e um inclinar de cabeça em face da alteridade, como um consentimento tácito.

O poema ainda contém certo ranço conservador, já que é matizado com as mesmas cores dramáticas de Rembrandt. Os versos falam de uma águia que desce dos céus e carrega a criatura pura que, subindo, degrada-se e assim recusa o pasto natural aberto aos homens. Segundo o texto, tais raptos “terríveis” se repetem agora na vida noturna das cidades, onde o beijo estéril de dois homens carrega um soluço dissimulado. A cena é descrita sob um céu em brasas, como se o próprio firmamento estivesse atormentado diante do dilema que a mitologia grega explicou como mistério e o pensamento cristão define como pecado.

A solução final, no entanto, é pacificadora. “Baixemos nossos olhos”.

A revelação do ponto de vista de Drummond sobre os gays, por ocasião da morte de Pedro Nava, permitiu verificar uma interessante dessincronia entre a posição íntima do autor e sua obra de arte. Inspirado por uma cena da mitologia, o poeta criou uma peça que, ao contrário de ser uma exteriorização pura de seus valores particulares, tende para o universal.

Por: Marcelo Bortoloti / Fonte: Folha de São Paulo

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