Deus tem AIDS
   18 de novembro de 2022   │     15:21  │  0

  “Deus tem AIDS”, de Fábio Leal e Gustavo Vinagre,  é um documentário bastante pessoal que apresenta entrevistas com sete artistas e um médico, todos eles vivendo com o vírus HIV, em narrativas que apresentam suas perspectivas sobre as imagens e as representações do HIV na atualidade.

Em exibição na mostra competitiva do 29º Festival MixBrasil, o documentário traz um olhar mais moderno sobre o HIV, conectando subjetividades e questões íntimas com arte, performance e perspectivas de futuro.

Diferente de “Carta Para Além dos Muros”, excelente documentário de André Canto, a perspectiva de “Deus tem AIDS” não é fazer uma historicidade do HIV/AIDS ou ser uma narrativa informativa.   Para Leal e Vinagre, importam muito mais as questões íntimas que cada personagem traz em suas narrativas pessoais, com olhares múltiplos e interessantes sobre o que é se viver com HIV num país como o Brasil nesse momento – quando se considera o cenário de instabilidade política do governo Bolsonaro e todos os seus cortes em relação as políticas públicas de combate à epidemia da AIDS.

“Deus tem AIDS” já tem um título que, por si só, é uma afirmação. Uma leitura apressada pode pensar no título como “polêmico”, “ousado”, porém essas afirmações dizem mais sobre o leitor do que sobre o título em si. Seria chocante um título que dissesse “Deus tem Diabetes”? Provavelmente não. Entendem-se os estigmas entorno do HIV/AIDS e todo o imagético que se criou sobre as pessoas que vivem com HIV: promíscuas, pecadoras, erráticas. Nesse sentido, o filme de Leal e Vinagre é provocativo e múltiplo, seus personagens divergem em seus olhares e apresentam complexidade para um tema que parece parado no tempo, com discussões estagnadas em olhares datados.

Os entrevistados vão trazer questões fundamentais para a discussão do HIV/AIDS neste tempo: qual é a cara de quem vive com HIV? A quem se destinam as políticas públicas de prevenção ao HIV/AIDS? Quem são as pessoas que ainda morrem de AIDS? A quem interessa ignorar essa discussão?

“Deus tem AIDS” consegue tangenciar temas como a ainda alta mortandade de pessoas por AIDS no Brasil mesmo com o tratamento gratuito e universal; bem como os atravessamentos do tema, isto é, como ele impacta a vida de homens e mulheres negros e de pessoas trans.

É interessantíssimo que todos esses pontos são debatidos a partir de experiências artísticas, transformações pessoais e experiências corpóreas que colocam em xeque estigmas, preconceitos e expectativas – essencialmente as expectativas de pessoas soronegativas. E para isso o filme também não tem medo de ser incômodo ou desconfortável, como por exemplo na filmagem detalhada de uma performance que envolve o sangue HIV + de um dos personagens. Essa ousadia não será surpresa para quem já acompanha o trabalho dos diretores, como os longas de Gustavo Vinagre, vide “A Rosa Azul de Novalis” (2018) e o recente “Desaprender a Dormir” (2021), porém pode surpreender os desavisados.

No final das contas, o grande trunfo do filme é ser um documentário extremamente político e forte em um ano como 2021, mas ainda assim ser surpreendemente subjetivo e íntimo, adentrando caminhos que tocam o espectador e auxiliam nesse olhar mais delicado e dedicado ao outro. As diferenças entre os personagens mostrados trazem esse olhar sobre o quanto ignoramos as pessoas que vivem com HIV e como esse tema parece ainda perdido em narrativas sobre mortes nos anos 80 e 90, ignorando aqueles que vivem e morrem no agora. Com suas ousadias e sua interessante montagem, “Deus tem AIDS” precisa ser visto, revisto e pensado em suas múltiplas perspectivas. Não perca!

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