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Pandemia, LGBTfobia e os impactos das negligências do Estado para esta população
   3 de abril de 2021   │     18:29  │  0

Artigo

Por: Andrey Lemos, presidente da União Nacional LGBT, entidade do Conselho Nacional de SaúdeSaúdeean / Jean Falcão e Sá, diretor de comunicação da União Nacional LGBT / Silvinha Cavalleire, conselheira nacional de combate à discriminação de LGBT / Theodoro Rodrigues, poeta e estudante de serviço social.

Nem os analistas políticos, econômicos e sociais mais dedicados puderam antecipar 2020. Vemos o mundo enfrentando transformações em todas as áreas, provocadas por intensos conflitos políticos, aprofundando uma grave crise econômica e uma avassaladora pandemia, a qual, aliada às desigualdades sociais e econômicas, agravou ainda mais a fome, o desemprego, a violência e a precarização das vidas. A população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT+) segue intensamente impactada por este cenário de caos.

O primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil foi diagnosticado em 26 de fevereiro, em um homem branco de 61 anos, residente na capital paulista, que voltara de uma viagem para a Itália, e a primeira morte confirmada pelo coronavírus aconteceu no Rio de Janeiro, uma mulher de 63 anos, negra e doméstica, um fato bastante simbólico: o vírus é mais letal para quem vive vulnerabilidades.  Até 8 de março de 2021, já são mais de 265 mil óbitos, com perspectivas desanimadoras, potencializadas pela indisposição, ineficiência e incapacidade governamental.

O governo federal se absteve do seu papel de comando central no enfrentamento à crise sanitária Promoveu deliberados e contínuos ataques ao Sistema Único de Saúde (SUS) diante das inúmeras mudanças de ministros, secretários, coordenadores e profissionais, guiadas não por critérios técnicos, mas pela ânsia de submeter a pasta a desmandos de toda ordem e nefastas orientações ideológicas. Defender o SUS nunca foi tão necessário.

Temos hoje mais de 14 milhões de pessoas desempregadas, 22% de aumento de casos de feminicídio, 40% mais casos de assassinatos de pessoas trans. A cesta básica aumenta o preço, ao mesmo tempo em que o auxílio emergencial cai 50% numa conta que só amplia as desigualdades para quem já vive a subalternidade.

Para LGBTs, ficar em casa pode ser um risco de violência

Ficar em casa tornou-se um desafio para mulheres e LGBTs, especialmente travestis e transexuais e outras identidades que sofrem violências intrafamiliares. A medida obrigou mulheres e LGBTs a permanecerem em convivência com seus agressores por um período mais prolongado, não à toa casos de feminicídio e transfeminicídio aumentaram em vários estados brasileiros.

No Estado do Mato Grosso, por exemplo, foram registradas 160 ocorrências de crimes contra LGBTs entre janeiro e agosto de 2020, conforme dados do Grupo Estadual de Combate aos Crimes de Homofobia (GECCH), divulgados pela Secretaria de Estadual de Segurança Pública (SESP-MT).

Se comparado com o mesmo período de 2019 – que teve 77 boletins – o número aumentou em 108%. O fato é que o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da lgbtfobia como crime de racismo, possibilitou acreditarmos no aumento da procura por equipamentos de segurança para denunciar as violências que sempre existiram.

Além disso, identificamos dificuldades em várias cidades no acesso da população LGBT+ a serviços e procedimentos de saúde, incidimos politicamente junto a gestores e fomentamos o controle social para que a saúde integral da população LGBT+ não fosse prejudicada. Mas sabemos que em muitos lugares a desassistência venceu, e acompanhamos pelas redes sociais muitos casos de depressão, tentativas de suicídio e até novas infecções e condições crônicas.

O movimento social fez o que o governo não conseguiu: protagonizou campanhas de arrecadação de roupas e de alimentos para pessoas cujas vulnerabilidades agravaram com o isolamento social. A confecção e a distribuição de máscaras foi uma oportunidade aproveitada para diminuir os impactos da doença na vida das pessoas e reduzir os efeitos da pandemia.

Ausência de dados sobre LGBTs e Covid-19

De acordo com diagnóstico do Coletivo #VoteLGBT entre 28 de abril a 15 de maio de 2020, houve piora na saúde mental em 42,72% dos mais de 10 mil entrevistados de todo o país como o principal impacto da pandemia para a população LGBT+. Uma parcela ainda maior, 54%, afirmou que precisa de apoio psicológico. As novas regras do convívio social, a solidão e o convívio familiar foram mencionados por 39,23% Dos participantes, 17,62% citaram as dificuldades econômicas como os maiores impactos, por falta de trabalho ou de dinheiro.

Segundo dados do Sistema Único de Saúde (SUS), divulgados em 2020, a cada uma hora uma pessoa é agredida devido sua orientação sexual ou identidade de gênero. A vida de uma pessoa LGBT+ no Brasil é marcada pela violação dos direitos humanos, por diversas violências sejam elas psicológica, moral, física e para atualizar ainda mais nossos leitores, o Brasil segue liderando o ranking de assassinatos contra essa população.

Sobre a população LGBT+, não encontramos a informação do número exato de adoecimentos e mortes pela Covid-19. A  pesquisa do Coletivo #VoteLGBT, realizada de forma independente, teve participação de 44% das lésbicas; 34% dos gays; 47% dos bissexuais e pansexuais; e 42% das transexuais. Destes, 21,6% do mesmo grupo afirmaram que estão desempregadas. Outros 28% dos entrevistados receberam o diagnóstico prévio de depressão. 97% dos entrevistados consideraram péssima a atuação do governo federal. No Brasil, ser LGBT é um risco de morte. Nossas reivindicações seguem cada vez mais inviabilizadas.

Neste ano de 2021, acreditamos na esperança e na luta para dissipar as angústias e descortinar a felicidade. Em frente ampla, irmanados, irmanadas e irmanades, seguiremos em defesa da democracia, da felicidade, da cidadania. Pela vacina, combatendo racismos, machismos e LGBTfobias. Seguiremos resistindo, avançando rumo à garantia dos direitos de todes, por uma democracia inquebrantável e pela soberania nacional. Esse é o nosso desejo, tão enorme quanto o nosso desejo de liberdade de ser e amar.

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Bahia de todos os sodomitas: roteiro LGBT da antiga Salvador
   2 de abril de 2021   │     20:26  │  0

Por: Luiz Mott –
Luiz Roberto de Barros Mott é um antropólogo, historiador e pesquisador, e um dos mais conhecidos ativistas brasileiros em favor dos direitos civis LGBT. Luiz Mott é uma das figuras mais conhecidas do movimento LGBT e foi considerado um dos gays mais poderosos do mundo em uma lista feita pela revista americana Wink.
O escritor Goethe acertou ao dizer que a homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade. No caso da Bahia, nossos cronistas e missionários encontraram muitos índios “Tibiras”  e índias  “Çacoaimbeguiras” amantes do mesmo sexo, alguns vivendo uniões estáveis, outros com cabana no mato para receber amantes unissexuais. Uma dezena de colonos portugueses confessaram à Inquisição ter mantido relações homoeróticas na Bahia já nas primeiras décadas de nossa história. O mesmo ocorrendo com africanos escravizados, incluindo nossa primeira travesti, da etnia Manicongo, moradora na Ladeira da Misericórdia.

A rica documentação inquisitorial fornece interessantes detalhes de como era a vida dos “LGBT” na capitania da Bahia antiga. Além de Salvador, há registro de sodomitas de ambos os sexos vivendo em Ilhéus, Santo Amaro de Ipitanga, Cachoeira, São Gonçalo, Matoim, Cotegipe, Passé, Sergipe do Conde e del Rey. Também foram citados como moradia de homossexuais: as Ilhas de Maré e Itaparica, Ponta do Humaitá, Praia Grande, Rio Vermelho, Vila Velha, Itapuã. Dentro das muralhas da urbe soteropolitana, havia gays, lésbicas e até travestis vivendo, paquerando e transando “na Calçada de São Francisco, junto a Cadeia (subsolo da Câmara), atrás do Convento do Carmo, próximo à  ermida da Ajuda, na rua de São Francisco, na Rua Direita, detrás do muro arruinado do Convento de São Bento, na Fonte das Pedras”. Importantes imóveis históricos abrigaram sodomitas na Bahia antiga: as “Casas del Rei, Casas da Relação, Palácio do Governador” (Rio Branco), mas sobretudo as moradias de religiosos, como o Colégio da Companhia de Jesus, os Conventos de São Francisco, de Nossa Senhora do Carmo, dos Beneditinos, o Recolhimento da Misericórdia, a Ermida de Monte Serrat e Quinta dos Lázaros.” A homossexualidade era chamada, com razão, “vício dos clérigos”.

No nosso Dicionário  Biográfico dos Homossexuais da Bahia (1999), resgatamos 202 LGBT pertencentes a todos os estamentos: índios,  escravos, lavradores, comerciantes, militares, muitos padres e estudantes, funcionários públicos, adolescentes, idosos, mulheres e homens casados. Como celebridades praticantes do “abominável e nefando pecado de sodomia”: Diogo Botelho, 8º Governador da Bahia, construtor da Forte de São Marcelo; Câmara Coutinho, 31º Governador da Bahia, assim retratado por seu contemporâneo Gregório de Matos: “o rabo erguido em cortesias mudas, como quem pelo cu tomava ajudas…” e o médico Sabino Álvares (1833), corifeu da Revolta da Sabinada.

Foi na Sé da Bahia e antigo Colégio dos Jesuítas, assim como no Mosteiro de São Bento, dedicado a São Sebastião, ícone gay desde a antiguidade, donde se tem mais registro de incontáveis orgasmos de “fanchonos e somítigos”. Foi na porta da primeira Catedral onde a lésbica mais audaz da história baianense ouviu sua sentença por “namorar outras mulheres”, sendo açoitada pelas ruas da velha Salvador (1591). Já no carnaval (entrudo) de 1638, na Torre desse mesmo templo foram flagrados masturbando-se reciprocamente os estudantes Manoel de Leão e Bartolomeu Ferreira; em 1669, denuncia-se ser “fama constante sem diminuição que o Tesoureiro mor da Sé comete o pecado nefando com muitas e várias pessoas eclesiásticas e seculares”.

Salvador rima com sodomia, não com homofobia!

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As múltiplas discriminações na vida de pessoas homossexuais com deficiência
   27 de março de 2021   │     10:00  │  0

Artigo

Por: Ana Raquel Périco Mangili é brasileira, tem 26 anos e reside em Barra Bonita/SP. Nasceu prematura, aos sete meses de gestação e, como consequência, adquiriu Distonia generalizada, Disfonia e deficiência auditiva. Pós-graduada (Especialista) em Linguagem, Cultura e Mídia na Unesp de Bauru/SP (2019).

Os homossexuais, bissexuais e transexuais com deficiência

Quando se fala em manifestações violentas de intolerâncias e preconceitos no Brasil, rapidamente a homofobia e a transfobia costumam ser citadas. A cada 25 horas, uma pessoa LGBT é assassinada no país, segundo dados de 2016 coletados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). E a média de vida das pessoas transexuais é metade da média de vida dos demais brasileiros: 35 anos, de acordo com o site SenadoNotícias.

Os LGBT também estão longe de serem minorias numéricas. Entre os jovens brasileiros de 24 a 35 anos, 27,9% deles são homossexuais ou bissexuais, segundo pesquisa feita pela PUC-RS em 2015 e divulgada inclusive no programa Fantástico, da Rede Globo. Esta é uma porcentagem ainda maior se comparada com a das pessoas com deficiência, que representam 23,9% dos brasileiros.

Então, quando estas duas categorias se interseccionam em um mesmo indivíduo, como fica a questão da visibilidade de suas vivências? Apesar da grande representatividade numérica dos LGBT e das pessoas com deficiência, a intersecção de tais segmentos sociais ainda segue extremamente invisibilizada e, não raro, também é alvo de discriminações.

Sophia Rodovalho dos Santos Rodrigues, psicóloga clínica e ambulatorial, explica que assumir a homoafetividade, ainda hoje em dia, é motivo de sofrimento, preocupação e de muito julgamento. “Para o indivíduo com deficiência, isto não é diferente. Ao contrário, este, em muitos momentos, pode ser ‘julgado’ como deficiente inclusive em sua orientação sexual, como se, por apresentar uma deficiência, acabasse por sobrar a ele o que a sociedade considera como os piores tipos relacionamentos: os homossexuais. Muita gente ainda tende a considerar como doença a questão da homossexualidade”, diz.

Walleria Suri Zafalon, 41 anos, aposentada e estudante universitária, moradora de Presidente Prudente/SP, possui retinose pigmentar (uma doença degenerativa da visão) e é mulher transexual. Ativista dos direitos da comunidade LGBT, ela conta sobre as múltiplas dificuldades que enfrentou quando iniciou o processo de transição de gênero, aos 35 anos.

“Não aguentava mais fingir ser um homem só para assegurar minha aceitação na sociedade. Demorei 30 anos para tomar essa decisão. Pois desde os cinco anos já tinha consciência de ser uma menina. Mas, quando resolvi me revelar, isso aconteceu de uma forma muito intensa. Fui demitida da empresa onde trabalhava, onde tinha um bom cargo e bom salário. Perdi grandes amigos de longos anos de convivência. Tive que deixar o apartamento onde morei por 10 anos, pois o imóvel era de um tio que também morava comigo e, durante minhas transformações, pediu para que eu procurasse outra moradia. Como eu não era aceita em pensões femininas, tive que ir morar em uma república masculina. Também fui obrigada a interromper, na época, o curso universitário que frequentava, porque sem trabalho não consegui manter os custos das mensalidades. Acho que o fato de eu ser deficiente visual me resguardou de muitos atos mais agressivos. Provavelmente as pessoas sentiam mais pena do que repulsa. Pois a bengala branca que uso me protege da imagem de promiscuidade com a qual sempre somos rotuladas. No entanto, na academia em que eu frequentava, era impedida de utilizar o vestiário feminino e tinha que trocar de roupas no masculino, ficando de lingerie na frente de um monte de homens”.

Diéfani Favareto Piovezan, que participou da segunda parte desta grande reportagem, além de ser mulher com deficiência física e auditiva causadas pela Síndrome de Brown Vialetto Van Laere, também é lésbica e já vivenciou uma situação de discriminação pela sua orientação sexual quando tinha apenas 14 anos. “Morei por um tempo nos EUA e, um dia, perdi o ônibus para ir pra casa e estava sem dinheiro para pegar táxi. Como meu amigo morava perto da escola, perguntei se podia ficar na casa dele até minha mãe chegar. Ele disse que não, porque o pai dele não me queria lá. Aí perguntei para outra amiga que era vizinha dele, e ela disse que o pai dele tinha contado para a mãe dela que eu era lésbica, e que ela também não me queria lá. Fiquei 40 minutos na neve e no vento por causa disso, até minha mãe chegar para me buscar”, relembra.

Léo Paulino Barbosa, 47 anos, vendedor, estudante de Direito, militante de direitos humanos da causa de pessoas transexuais e travestis, morador de Santo André/SP, surdo de um ouvido e com dificuldades de locomoção devido a um acidente de trânsito, é um homem transexual e relata que, em relação à busca por emprego, passa por preconceitos tanto por ser pessoa com deficiência quanto por ser transexual. “A frase que mais ouvi em quase 20 anos da minha vida foi ‘Nós não contratamos pessoas como você’. Isso foi me quebrando por dentro… Em relação à deficiência, quase sempre eles alegam que as funções para que o cargo seja exercido demandam agilidade e tempo em pé, ou muitas caminhadas longas. Eu sempre tento explicar que algumas coisas podem ser adequadas às minhas necessidades e que podemos desenvolver um trabalho mais efetivo com algumas atribuições nas quais eu posso ser melhor aproveitado. O problema é que eles já tem um perfil de quem vai ocupar aquela vaga e, claro, não é o de uma pessoa com deficiência”.

Já para Ivone Gomes de Oliveira, 49 anos, autora do Blog Gata de Rodas, moradora de São Paulo, cadeirante devido à poliomielite e mulher bissexual, os preconceitos tiveram início dentro de casa. “Quando era mais nova, uma vez pedi dinheiro para o meu pai para comprar um par de sapatos e ele me respondeu: ‘Sapato para quê, se você não anda?’. A minha mãe, ao perceber que fiquei arrasada com isso, dias depois comprou o sapato que eu queria. Mas também teve um paquerinha, nos tempos do antigo ginásio, que quando ele estava com os amigos dele, simplesmente fingia que não me conhecia. Um dia, perguntei porque ele me fazia aquilo, e ele me respondeu friamente: ‘Eu tenho vergonha de você!’. E, para piorar, minha mãe, quando ficou sabendo disso, ainda me disse: ‘Você não dá conta nem de você mesma e ainda vai arranjar namorado!’. Depois desse episódio, eu me fechei para o amor e demorou para eu voltar a acreditar que alguém pudesse realmente gostar de mim”, conta.

Situação semelhante em relação à aceitação familiar, mas agora no que diz respeito à orientação sexual, ocorreu com Lucas de Abreu Maia, 32 anos, jornalista doutorando em Ciência Política na Universidade da Califórnia, morador de La Jolla/EUA, cego de nascença e homem gay. Sua mãe foi a última de seus familiares a aceitar a sua homossexualidade.

“Meus amigos sempre agiram com total naturalidade. Minha mãe, surpreendentemente, demorou uns dois anos para aceitar. Isso foi muito difícil para mim, pois eu esperava que ela fosse me apoiar de cara. De início, ela se recusava a achar que eu fosse gay. Acreditava que era só uma fase. Obviamente não era. Com o tempo, contudo, ela passou a aceitar, tentou se aproximar dos meus namorados e, mais importante, uns dois meses antes de morrer, me disse: ‘Aprendi que meu filho é honesto, inteligente, trabalhador e gay, e eu tenho orgulho de todas essas características nele’. Eu e minha mãe sempre tivemos uma relação visceralmente próxima. Ouvir isso foi muito importante”, relata.

Para Leandra Du Art, 22 anos, fotógrafa, midialivrista, artivista, escritora e colunista na Mídia Ninja, moradora de Passos/MG, que tem uma síndrome rara chamada Artrogripose (que afeta o desenvolvimento dos ossos) e é mulher transexual, é comum se deparar com discursos de ódio. “Lógico que os ataques de ódio ainda existem e são vivos, latentes, porém, não permito me dar por atacada. O autoconhecimento sobre meu corpo, de se entender como um corpo com deficiência, se deu graças ao descobrimento da minha sexualidade. Quando entendi que meu corpo podia ser visto como belo e desejado, dei o start para começar a valorizar o reflexo que via no espelho e enfrentar o preconceito das pessoas”, explica.

Os entrevistados desta matéria também refletiram sobre a questão da pouca representatividade e da dupla exclusão que sua categoria interseccional costuma enfrentar. Walleria detalhou a situação muito bem com suas palavras. “Tanto as pessoas LGBT+ quanto os indivíduos com deficiência são entendidos como seres humanos fora do padrão da normalidade. O deficiente é repreendido e excluído pela sociedade achar que ele não tem capacidade. E o LGBT é repreendido e excluído igualmente por não ter legitimidade”.

Lucas e Diéfani acreditam que a representatividade do segmento LGBT já é um pouco maior que a dos indivíduos com deficiência. “Separadamente, vejo muito mais representatividade nos EUA do que aqui. E mesmo aqui no Brasil, quando tem, é mais comum que seja da pessoa LGBT do que da com deficiência”, diz Diéfani. Lucas  reforça esse posicionamento. “Infelizmente, como somos pouquíssimos LGBT’s com deficiência, somos quase invisíveis. A maior parte das pessoas encara o indivíduo com deficiência como um assexuado. Na mídia, a pessoa com deficiência é claramente subrepresentada. Quase toda novela atualmente tem um personagem gay, mas quantas novelas têm um personagem com deficiência?”.

Já Ivone dá exemplos que também se alinham com as falas acima. “Esta luta das pessoas com deficiência, porém, ainda se encontra em estágio embrionário. Basta observar que, enquanto na comunidade LGBTQIA cada categoria luta por sua letra, a pessoa com deficiência ainda luta para ser reconhecida como homem e mulher, por exemplo, ao observar que a grande dos banheiros acessíveis é unissex”.

Leandra ainda lembra que o próprio tema da sexualidade é tabu, principalmente quando se encontra com a categoria deficiência. “Nada se fala em relação à sexualidade da pessoa com deficiência em vista de outras grandes pautas deste público. Falar de sexualidade, no geral, ainda é um tabu muito grande, quem dirá discutir então o direito de gozar de uma pessoa que é colocada em um pedestal de glória e pena, não é mesmo? Hoje em dia, há alguns nomes fortes que levam a pauta da sexualidade de pessoas com deficiência adiante, sem duvida nenhuma, e é só ao se falar mais do assunto é que vamos fazer com que as pessoas com deficiência sejam libertas deste estigma”, pondera.

Mas, comparando a aceitação das pessoas com deficiência dentro e fora das comunidades interseccionais, Léo acredita que o ambiente LGBT é um pouco mais acolhedor. “Ainda estamos longe de um movimento que entenda as necessidades de pessoas com deficiência. Mas isso é reflexo da sociedade em que vivemos. Não tenho certeza quanto a avanços expressivos fora da militância, mas o que eu posso garantir é que dentro do movimento LGBT+ há um respeito e acolhimento maior do que dentro da sociedade cisgênera e heterossexual, onde já me derrubaram duas vezes no metrô, onde já me negaram lugar no trem e ainda me disseram ‘Não vou sair, vem me tirar daqui se tu for homem’”.

Walleria contrapõe esta visão ao afirmar o contrário. “Vejo que as minorias excluídas também podem ser muito capazes de excluir quem lhe são diferentes. Já participei de muitos grupos de pessoas com deficiência visual e participo ainda hoje de grupos de pessoas trans e pessoas LGBT. Os indivíduos com deficiência não me veem como mulher por eu ser trans, da mesma forma que o restante da sociedade. E as pessoas LGBT não me veem com capacidade por eu ser deficiente visual, da mesma forma”, conclui.

Os queer, intersexuais e assexuais com deficiência

Enquanto lésbicas, gays, bissexuais e transexuais, apesar da árdua luta diária contra o preconceito, já possuem pelo menos um certo reconhecimento de sua existência na sociedade, outras categorias da comunidade LGBTQIA são ainda mais invisibilizadas, até mesmo dentro do próprio segmento. A palavra queer, por exemplo, serve para designar, de forma geral, os indivíduos que não são heterossexuais ou que não seguem o binarismo de gênero (masculino/feminino), podendo se referir a qualquer orientação ou identidade dentro da categoria LGBTQIA.

Já a intersexualidade é um termo utilizado para se referir a um conjunto de variações corporais e/ou genéticas que fazem com que uma pessoa não se encaixe nas definições biológicas padrões de masculino ou feminino. Pessoas intersexuais podem nascer com órgãos e/ou cromossomos sexuais híbridos, e as estatísticas sobre este segmento populacional variam entre 0,018% a 1,7% da população mundial.

Os intersexuais enfrentam discursos de patologização e correções cirúrgicas semelhantes às vivenciadas pelas pessoas com deficiência. Com o diferencial de que, na maioria dos casos, a adequação sexual cirúrgica é meramente estética e compulsória, feita quando a pessoa é recém-nascida e ainda não tem condições de decidir se quer ou não passar por tal procedimento. O resultado então é que, muitas vezes, tais pessoas são forçadas a se adequarem a um gênero com o qual não se identificam.

Além disso, também pode haver implicações legais apenas pelo fato do individuo ser intersexual. Thais Emilia de Campos, pedagoga habilitada em Educação Especial pela UNESP, psicopedagoga formada pela UNORP, Mestre e Doutoranda em Educação pela UNESP, só conseguiu registrar o seu filho Jacob no cartório dois meses após o nascimento dele, pois os órgãos públicos exigiam que se definisse o sexo do bebê. Sem este registro ao nascer, os indivíduos intersexuais ficam sem direitos básicos, como o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS). Thais chegou a ouvir dos médicos, ainda quando estava grávida, a sugestão de que abortasse a criança, devido também a outras complicações de saúde que o bebê teria.

“Ativistas intersexuais no Brasil e em todo o mundo buscam, através da visibilidade e do descontentamento com as intervenções cirúrgicas e as adequações com hormonização obrigatória, denunciarem a situação de violação dos Direitos Humanos, da integridade física e do princípio da autonomia, relatando suas histórias de vidas e as mutilações sofridas em seus corpos”, desabafa Thais, que tem uma campanha no Facebook para arrecadar recursos para o tratamento de Jacob, pois o bebê possui cardiopatia congênita grave e Síndrome de Noonan.

Amiel Modesto Vieira, sociólogo Mestre em Ciências Humanas e Sociais, e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, em associação com UFRJ, UERJ, UFF e FIOCRUZ, também é uma pessoa intersexual e com deficiência (pé torto congênito e insensibilidade a andrógenos). Ele comenta sobre a exclusão e o preconceito histórico contra os intersexuais.

“No passado, nas feiras de curiosidades, corpos intersexos eram exibidos como monstros. Hoje, somos vistos como ‘monstros corrígiveis’, pois estamos no meio social, mas nossos corpos não são aceitos como são e precisam ser adequados. Esta é a interfobia, que cala nossos corpos com segredo e silêncio durante a vida e não permite à sociedade nos conhecer. Nossa existência é a prova de que a resistência é possível, necessária e eficaz”, defende.

E os assexuais? Ao contrário da visão comum que algumas pessoas têm sobre esta orientação, na verdade a assexualidade é um termo que designa um amplo espectro de orientações sexuais e/ou românticas baseadas na gradual ausência de atração física. Isto é, assexuais não são apenas os indivíduos que nunca fazem sexo ou que não possuem interesses amorosos: há diversas subcategorias na assexualidade, como por exemplo, a demissexualidade, que representa as pessoas que conseguem sentir desejo sexual somente após um vínculo afetivo. E também as pessoas assexuais podem estabelecer relacionamentos românticos com outros indivíduos do sexo oposto ou do mesmo sexo, dependendo de sua orientação romântica.

No Brasil, cerca de 7,7% das mulheres e 2,5% dos homens relataram não sentir interesse sexual, segundo pesquisa do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) da USP.  Elisabete Regina de Oliveira, doutora em Sociologia da Educação e considerada a principal pesquisadora sobre assexualidade no país, explica que é muito comum a confusão feita entre assexualidade e transtornos hormonais.

“A assexualidade não é um transtorno, é uma forma de viver e ver o mundo. Muitas pessoas que eu entrevistei na minha pesquisa fizeram exames de dosagem hormonal, mas não foi constatada nenhuma deficiência hormonal. Porém, mesmo que assim fosse, se a pessoa já nasceu e cresceu com alguma deficiência hormonal e por isso não sente atração sexual, nunca vai sentir falta e isso não será um problema para ela. Portanto, cabe somente a tal pessoa a interpretação desse desinteresse por sexo e de que modo isso será parte de sua construção identitária. Se ela interpretar como problema, vai buscar ajuda; se para ela está bem assim, não há por que ser infeliz por causa disso”.

Mas, e quando o indivíduo, além de ser assexual, também tem uma deficiência (de natureza física, sensorial ou intelectual)? As pessoas com deficiência e com outras orientações sexuais lutam justamente pelo direito de manifestação de sua sexualidade e contra o estereótipo da assexualidade compulsória, então há um silenciamento muito grande em relação aos indivíduos com deficiência e que são realmente assexuais.

Vinícius Feres Laud, 20 anos, estudante, morador de Taubaté/SP, que possui escoliose e é demissexual heteroromântico, conta sobre algumas situações de preconceito pelas quais já passou, tanto pelo fato de ter uma deficiência quanto o de ser assexual.

“Tenho uma avó que tem uma superproteção enorme comigo, e várias vezes me trata como um inválido. Demora muito também para eu sentir alguma vontade de ficar com uma mulher, e isso foge da realidade das pessoas à minha volta. Sempre amigos me forçavam a ficar com alguém que eu não tinha nenhuma confiança e afeto, e quando eu recusava, me excluíam de muitas socializações. Diversidade é algo que ainda assusta as pessoas, há um medo de ser mal visto por conviver com alguém diferente. A luta contra a segregação é uma faca de dois gumes, pois temos que dar a ‘cara a tapa’ para mostrar que existimos, mas também aguentar os discursos de ódio como consequência”, reflete, reflete.

* Créditos das fotografias: Tassio Lopes (quinta imagem) e arquivo pessoal dos entrevistados (demais fotografias).

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Como acessar o SUS para questões de Transição?
   18 de março de 2021   │     19:33  │  0

Por: Bruna Benevides – Segunda-Sargenta da Marinha do Brasil, e há 21 anos ingressou na carreira militar.  Uma trajetória comum, mas cercada pela transfobia. Militante e defensora dos direitos humanos da população LGBTI, em especial das pessoas trans e travestis, ela também é coordenadora e articuladora do Instituto Brasileiro Trans de Educação e presidenta do Conselho LGBT de Niterói.    Dentre outras atividades, Bruna também é vice-presidente da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBT.

 


Constante são as procuras sobre as dúvidas em relação para acesso ao processo transexualizador do SUS e sobre quais procedimentos temos garantido o direito, além do funcionamento e fluxo de atendimento.

Organizamos algumas informações, mas é imprescindível que todas as pessoas possam ler e acessar a Politica Nacional de Saúde Integral LGBTI do Ministério da Saúde e a própria portaria que instituiu o processo Transexualizador do SUS.

Em 2006, o SUS introduziu, por meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o direito ao uso do nome social, pelo qual travestis e transexuais se identificam e escolhem ser chamados socialmente – e não apenas nos serviços especializados que já os acolhem, mas em qualquer outro da rede pública de saúde. O Processo Transexualizador foi instituído em 2008, passando a permitir o acesso a procedimentos com hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, assim como acompanhamento multiprofissional. O programa foi redefinido e ampliado pela Portaria 2803/2013, passando a incorporar como usuários do processo transexualizador do SUS os homens trans e as travestis, tendo em vista que até então apenas as mulheres trans eram assistidas pelo serviço.

Não utilizamos o termos Afirmação de Gênero, pois partimos de uma ideia onde nenhuma modificação corporal (ou a ausência dela), apesar de serem importantes, definem nossa transgeneridade e que nosso gênero já está muito bem estabelecido quando optamos por qualquer mudança. Portanto, utilizamos o termo cirurgias de modificações corporais quando nos referirmos aos procedimentos cirúrgicos.

A criação do processo transexualizador do SUS sinaliza-se como importante avanço na universalização desta à população trans brasileira e uma grande conquista dos movimentos sociais. Contudo, a efetivação desse programa ainda coloca alguns desafios para gestores e trabalhadores do SUS. Mas especialmente pela população Trans, visto que ainda são poucos serviços e há questões que limitam o acesso a maior parte de nossa população.

O cuidado com a população trans é estruturado por dois componentes: a Atenção Básica e a Atenção Especializada. A Básica refere-se à rede responsável pelo primeiro contato com o sistema de saúde, pelas avaliações médicas e encaminhamentos para tratamentos e áreas médicas mais específicas e individualizadas.

A Especializada é dividida em duas modalidades: a ambulatorial (acompanhamento psicoterápico e hormonização) e a hospitalar (realização de cirurgias de modificação corporal e acompanhamento pré e pós-operatório).

Para todas as pessoas, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Para os hospitalares, ela aumenta para 21 anos. Qualquer indivíduo pode procurar o sistema de saúde público e é seu direito receber atendimento humanizado, acolhedor e livre de discriminação.

Até o momento, de acordo com o Ministério da Saúde, os únicos hospitais que podem realizar cirurgias de transgenitalização no Brasil pelo SUS são o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, o HC da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, o HC da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, o HC da Universidade de São Paulo e o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro. Apenas três unidades fazem acompanhamento preventivo, com foco em crianças e adolescentes de 3 a 17 anos. Uma das unidades está na capital de São Paulo; outra, em Campinas; e a terceira, em Porto Alegre.

Para ter acesso aos serviços do processo transexualizador do SUS, é preciso solicitar encaminhamento na unidade básica de saúde mais próxima da sua residência. Os procedimentos mais procurados são a hormonização, seguidos de implantes de próteses mamárias e cirurgia genital em travestis e mulheres trans, assim como a mastecomia e histerectomia no caso dos homens trans. A faloplastia ainda é feita em caráter experimental no Brasil.

Importante atentar para as filas de acesso – que hoje variam em mais de 10 anos para a redesignação sexual, e buscar informações sobre os procedimentos necessários para acesso a tratamento fora de domicílio (TFD) pelo SUS, para aquelas pessoas que moram em cidades onde não hajam serviços especializados.

Requisitos básicos para acesso ao processo Transexualizador:

  • Maior de 18 anos para iniciar processo terapêutico e realizar hormonização;
  • Maior de 21 anos para cirurgias de redesignação sexual, com indicação médica; e
  • Necessidade de avaliações psicológicas e psiquiátricas durante um período de 2 anos, com acompanhamentos e diagnóstico final que pode encaminhar ou não a paciente para a cirurgia tão aguardada.

IMPORTANTE: A cirurgia plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do código penal brasileiro, haja vista que tem o propósito terapêutico (RESOLUÇÃO CFM nº 1.652/2002)

Desde junho deste 2019, a transexualidade não está mais na lista de doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo a entidade, a transexualidade passa a integrar como “incongruência de gênero” a categoria denominada “condições relativas à saúde sexual”.

Principais alterações na Resolução 2265/2019 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre o cuidado específico à pessoa transgênera:

• A adoção da nomenclatura médica da transexualidade como “incongruência de gênero” nos termos da atualização da CID feita pela OMS em junho de 2018;
• A previsão do Projeto Terapêutica Singular (PTS) que servirá para elaborar o conjunto de propostas terapêuticas articuladas do paciente, que deve ser objeto de discussão coletiva da equipe multiprofissional e interdisciplinar com participação de cada indivíduo e de seus responsáveis legais; .
• Para crianças e adolescentes na pré-puberdade: previsão somente do acolhimento e do acompanhamento por equipe multiprofissional e interdisciplinar; .
• Para crianças e adolescentes em puberdade: previsão da possibilidade de bloqueio hormonal que consiste na interrupção da produção de hormônios sexuais, impedindo o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários do sexo biológico. Prática condicionada à anuência da equipe multiprofissional e do responsável legal do paciente;
• Para adolescentes a partir dos 16 anos: previsão da possibilidade da hormonoterapia cruzada que é a reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outros medicamentos são administrados nas pessoas trans para desenvolverem a feminização ou masculinização de acordo com a sua identidade de gênero. Prática condicionada à anuência da equipe multiprofissional e do responsável legal do paciente; • Previsão de realização de procedimento cirúrgico somente a partir dos 18 anos e com acompanhamento prévio mínimo de 01 ano por equipe multiprofissional e interdisciplinar; e .
• Avanço na cirurgia de metoidoplastia para homens trans que deixa de ter caráter experimental.

Contudo a portaria do SUS ainda não foi atualizada, onde os requisitos permanecem os mesmos da Portaria vigente. 

Lembramos ainda sobre a necessidade de seguir atentas junto ao ministério da saúde, pois é lá que as recomendações precisam de fato ser homologadas para entrar em prática, e o cenário que temos naquele ministério é o pior possível. Visto os desmontes que temos acompanhado desde a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que congelou o investimento nas políticas de saúde, alem dos retrocessos e constantes ataques ao SUS.

Desta forma seguiremos na luta pela despatologização das identidades Trans, e o contra o ato médico sobre nossos corpos. Sempre em busca da garantia do respeito a autonomia do sujeito, sua autodeterminação e o acesso à saúde sem um viés biologizante ou genitalista.

Lista de unidades de saúde no Brasil<img class=”i-amphtml-intrinsic-sizer” style=”max-width: 100%; display: block !important;” src=”data:;base64,” alt=”” />

  • Centros de referência com atendimento ambulatorial e hospitalar (cirúrgico):
Hospital Cidade
UFG – Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás Goiânia/GO
UFRGS – Hospital de Clínicas de Porto Alegre Porto Alegre/RS
UFP – Hospital das Clínicas Recife/PE
UERJ – Hospital Universitário Pedro Ernesto Rio de Janeiro/RJ
FMUSP – Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina São Paulo/SP

 

  • Ambulatórios do SUS:
Ambulatório Cidade
CPATT – Centro de Pesquisa e Apoio a Travestis e Transexuais Curitiba/PR
Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Rio de Janeiro/RJ
Hospital Universitário Professor Edgard Santos Salvador/BA
Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS São Paulo/SP
Ambulatório do Hospital das Clínicas de Uberlândia Uberlândia/MG
Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes Vitória/ES

 

  •  Ambulatórios das redes de saúde estaduais:
Ambulatório Cidade
Ambulatório Transexualizador da Unidade Especializada em Doenças Infectoparasitárias e Especiais Belém/PA
Ambulatório de atenção especializada no Processo Transexualizador do Hospital Eduardo de Menezes Belo Horizonte/MG
Ambulatório Trans do Hospital Dia Brasília/DF
Ambulatório LGBT Darlen Gasparelli Camaragibe/PE
Ambulatório de Saúde de Travestis e Transexuais do Hospital Universitário Maria Pedrossian Campo Grande/MS
Centro de Saúde Campeche Florianópolis/SC
Centro de Saúde Estreito Florianópolis/SC
Centro de Saúde Saco Grande Florianópolis/SC
Ambulatório de Saúde Trans do Hospital de Saúde Mental Frota Pinto Fortaleza/CE
Ambulatório de Transexualidade do Hospital Geral de Goiânia Alberto Rassi Goiânia/GO
Ambulatório para travestis e transexuais do Hospital Clementino Fraga João Pessoa/PB
Ambulatório de Saúde Integral Trans do Hospital Universitário da Federal de Sergipe Lagarto/SE
Ambulatório LGBT Patrícia Gomes, Policlínica Lessa de Andrade Recife/PE
UPE, Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros Recife/PE
Ambulatório LBT do Hospital da Mulher Recife/PE
Ambulatório de Estudos em Sexualidade Humana do HC Ribeirão Preto/SP
Ambulatório do Centro Estadual de Diagnóstico, Assistência e Pesquisa Salvador/BA
Ambulatório trans do Hospital Guilherme Álvaro Santos/SP
Ambulatório Municipal de Saúde Integral de Travestis e Transexuais São José do Rio Preto/SP
Ambulatório AMTIGOS do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas São Paulo/SP
Ambulatório Roberto Farina, UNIFESP São Paulo/SP
UBS Santa Cecília São Paulo/SP
Ambulátorio de Saúde Integral de Travestis e Transexuais João W. Nery Niterói/RJ

Por Bruna Benevides

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Índia, dos tempos passados, a criminalização e reconhecimento da homossexualidade
   21 de dezembro de 2018   │     11:58  │  0

Em setembro desse ano, a Suprema Corte da Índia determinou que relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo não é mais uma ofensa criminal e que a discriminação baseada na orientação sexual é uma violação fundamental dos direitos humanos. Essas notícias foram celebradas ao redor do mundo e marcaram um marco na história do país, e para os direitos LGBT em geral – a maior e mais populosa democracia do mundo está permitindo que os seus cidadãos amem quem eles quiserem.

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Participants get ready as they attend a gay pride parade promoting gay, lesbian, bisexual and transgender rights in Mumbai

Enquanto o mundo estava celebrando, eu tive alguns amigos britânicos me enviando mensagens dizendo “Finalmente! A Índia alcançou os dias de hoje! Isso é incrível! Parabéns!”. Essas mensagens foram genuinamente enviadas como uma celebração da decisão indiana em retirar a proibição, e como essas mensagens foram enviadas por amigos próximos eu não fiquei ofendido. Porém, eu tive que lembrar eles de que a relação que a Índia tem com as identidades de gênero, fluidez e sexualidade tem sido, historicamente, muito mais avançada que a do ocidente. Na realidade, eu lembrei aos meus amigos, que foi somente quando a Índia foi colonizada pelos britânicos que regras de identidade de gênero foram introduzidas e a homossexualidade foi banida, fazendo com que o país se alinhasse com os valores da Inglaterra vitoriana.

Os ingleses viam a abordagem relaxada da Índia sobre a sexualidade e o gênero como anormais, imorais e não-cristãos, e assim que conseguiram tomar o poder das políticas do país, eles forçaram as suas crenças de que somente existem dois gêneros e que as relações sexuais e o casamento deveriam somente existir entre um homem e uma mulher.

Esse então é um lembrete para muitos que a Índia teve uma abordagem aberta e liberal da sexualidade e gênero, e de alguma maneira “alcançava os tempos de hoje”, antes mesmo do ocidente. Retirar a proibição sobre relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo se tornou um passo no processo de descolonização da Índia, e a rejeição do legado homofóbico do império britânico. Isso é realmente o que nós deveríamos estar celebrando e lembrando as pessoas.

Antes do Raj britânico, a intimidade homoafetiva na Índia era simplesmente parte da vida, e as linhas entre homem e mulher e heterossexual e homossexual nos tempos antigos indianos eram borrados.

Abaixo alguns exemplos:

REI BHANGASVANA

indra_dikpalaBhīṣma narra a história do Rei Bhangasvana, que, depois de ter cem filhos foi transformado em uma mulher pelo deus Indra durante uma caça. Agora como mulher, ela retorna para o seu reino, relata a história, entrega o seu reino para o seu filho e se aposenta na floresta para ser a esposa de um eremita, dando a luz para outros cem filhos, agora como a mãe. Depois de um tempo, Indra oferece transformar ele de volta em um homem, mas ela se recusa. O sexo deu muito mais prazer para ela como mulher do que como homem, e ela se sentia mais confortável como uma mulher, e por isso ela resolveu permanecer com esse novo gênero.

AGNI

agni

Agni, o deus do fogo, riqueza energia criativa, teve relações sexuais com outros homens envolvendo receber o sêmen de outros deuses. Apesar de ser casado com a deusa Svaha, Agni também é representado como par romântico de Soma, o deus da lua. Agni toma um papel interessante nesse relacionamento, aceitando o sêmen de Soma com a sua boca, criando paralelos do papel de Agni em aceitar sacrifícios da Terra pelos Céus.

 

KRITTIVASI RAMAYANA

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Algumas versões do texto Bengali Krittivasi Ramayana contêm a estória de duas rainhas que tiveram uma criança juntas. Quando o famoso rei da dinastia Sun, Maharaja Dilipa, morreu, os semi-deuses ficaram preocupados que ele não teria ninguém para suceder o trono. Shiva apareceu para as duas rainhas viúvas e disse, “Vocês duas devem fazer amor e através da minha benção vocês irão conceber um belo filho”. As duas rainhas executaram a ordem de Shiva e uma delas deu a luz a uma criança.

 

KAMA SUTRA

O Kama Sutra é o mais antigo e notável texto clássico Hindu sobre o comportamento sexual humano da literatura sânscrita. Ele se apresenta como um guia para uma vida virtuosa e graciosa que discute a natureza do amor, vida familiar, e outros aspectos para as características orientadas pelo prazer da vida humana. Esse é outro exemplo da abertura que a Índia tinha ao abordar o comportamento e preferências sexuais, oferecendo conselhos sobre posições sexuais tanto para casais heterossexuais como homossexuais.

O MAHABHARATA

Na estória do Mahabharata (o poema época mais longo da Índia), Arjuna (o filho de Indra) é enviado para o exílio, onde ele decide viver a sua vida como uma pessoa trans nomeada Brihannala. Ela até performa a tradicional dança indiana de kathak e abraça as suas características femininas em seu máximo.

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SOMVAT E SUMEDHA

Outro épico hindu é o Somvat e Sumedha, dois amigos de infância que decidem se casar apesar de serem homens.

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OUTROS EXEMPLOS

Outros exemplos da antiga abordagem indiana sobre sexualidade e gênero a de incluem Awadh, hoje conhecido como o município de Lucknow, que tinha um governador que vivia como o gênero oposto em algumas situações, e mudava de parceiros sexuais nessas situações. Novelas bengali do final do século XIX, como os de Indira, descrevem relações lésbicas, e textos de muçulmanos sufistas do leste indiano explicitamente mencionam o romance homossexual entre homens sem nenhum tipo de vergonha ou culpa. Essas novelas e textos surgem das crenças metafísicas indianas de que existe mais do que o binarismo homem/mulher, mas também um homem com o coração de uma mulher e uma mulher com o coração de um homem. Indianos aplicam masculinidade e feminilidade para os corpos físicos e para as almas. O Bhagavad Gita nos ensina que não existe nada inatural na natureza e todas as maneiras de ser são manifestações do divino.

AS IMPOSIÇÕES DO IMPÉRIO BRITÂNICO

Essa abordagem aberta e fluida de gênero e sexualidade colidiam com as ideias da coroa britânica de como a sociedade deveria ser. Na época, a Inglaterra era ditada pela religião cristã e crenças sociais vitorianas conhecidos por serem pudicos e puritanos, e qualquer forma de intimidade que não tinha como objetivo a procriação era considerável inaceitável. Atos homossexuais eram vistos como os piores de todos.

O Império Britânico implementou a seção 377 do Código Penal Indiano em 1861, o que tornou uma ofensa criminal qualquer tipo de relacionamento que demonstre um “desejo carnal inaceitável”, a punição para tal era a cadeia, multas pesadas, ou ambos. A lei também foi implementada na Austrália, e nas colônias britânicas do Sudeste Asiático e da África.

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O Raj britânico também fez um esforço consciente para alienar e marginalizar comunidades não-binárias, tais como as Hijras – uma identidade de gênero de pessoas intersexo ou designadas homens ao nascer que se apresentam como mulheres. Hoje, Hijras são reconhecidas e protegidas pelas leis da Índia, Paquistão e Bangladesh.

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O QUE LEMBRAR

Então, o que estamos celebrando? Esse movimento louvável da Suprema Corte, embora um pouco atrasado, não é uma questão da Índia estar entrando de acordo com o mundo moderno ou tentando “chegar nos dias de hoje”. Enquanto a Inglaterra foi mais rápida em jogar fora os preconceitos e a discriminação de seu passado, é importante lembrar que foi a Inglaterra que jogou esse peso nos ombros da Índia. E por isso a Índia não precisa “alcançar” o resto do mundo; ela está na realidade celebrando a fluidez de gênero e as relações homoafetivas que existiam há séculos. A Índia está se livrando dos quadros legais do seu passado imperial e abraçando parte da sua cultura e história que tinham sido enterrados pelo peso do colonialismo.