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Homem hétero e fio terra: uma discussão que ainda causa choque
   8 de novembro de 2022   │     0:00  │  0

Artigo

Por: Luiza Sahd – jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Assim como a gente deveria fazer na vida real, para falar aqui de toque anal — popularmente evocado como fio terra –, vou tentar fazer a introdução mais cuidadosa e delicada que puder.

Acontece o seguinte: um dos maiores fetiches do pornô mundial é o sexo anal e, sendo eu da mesma espécie que as pessoas com quem eventualmente transo, não entendo como tanta gente (talvez a maioria) acredita que um gênero pode ficar feliz com estímulos anais e o outro não.

Se homem que é homem não gosta de ser tocado na próstata, de duas, uma: ou eles supõem que não existe prazer ali — mas fantasiam com a nossa penetração dolorosa mesmo assim — ou nem pararam para pensar que nossos ânus são idênticos e que, portanto, recebem estímulos com o mesmo prazer ou desprazer. Deve haver, ainda, em algum lugar, os que acham que enfiar dedos em buracos é coisa que só um cara sabe fazer e os que acreditam que a nossa alegria está puramente no privilégio de oferecer esse orifício inusitado para o bel prazer do parceiro. Nesse caso, rir é o melhor remédio.

Antes de tudo, quero falar com minhas amiguinhas, as mulheres, sobre nojo. Na primeira vez que coloquei meu próprio reto pra jogo, além de sentir dor (porque a coisa não foi feita com a perícia que deveria), fiquei tensa o tempo todo com a possibilidade de ter fezes vergonhosamente expostas para a apreciação visual e olfativa do crush. Todo respeito por quem curte cocô, mas nunca foi muito a minha área. Assim sendo, graças ao combo dor + nojo, deixei o assunto pra lá por mais de uma década.

Corta para Madrid, onde descobri que o homem europeu não é moderno só na hora de usar cachecol e alpargata: aqui, os caras não tem lá muito problema em dizer que já beijaram outros e, fora isso, são mais íntimos das próprias próstatas. Com mais frequência do que o brasileiro, eles costumam dar e pedir uma atenção especial na região (você, garota que está lendo este texto: você sabe que tem uma próstata também, certo?).

Muito que bem. Meus primeiros contatos com esse “submundo” foram cheios de temor pelos motivos de sempre. Se já não tenho a melhor relação do mundo com minhas fezes, o que dizer das alheias? Não, obrigada. Até o dia em que recebi um apelo sutil por fio terra vindo de um cara 800% hétero e me perguntei “Não eras tão desconstruída, Luiza? Vai lá!”. E fui mesmo.

Se você achou que essa história teria um desfecho mirabolante, achou errado. A incursão não só foi ótima (muito interessante sentir as contrações de prazer na mão se você nunca penetrou ninguém, recomendo!) como teve um desfecho sem acidentes, inclusive por motivos de lencinho umedecido no criado-mudo. Não, eles não limpam de verdade e a gente tem que lavar tudo bem direitinho depois, mas lenços garantem a continuidade do chamego sem maiores desconfortos até a próxima ida ao banheiro. Tudo assim de simples, sempre e quando você tenha em mente que o que entrou num bumbum não pode entrar numa vagina; as bactérias não combinam e isso aí sempre dá ruim na vagina — esse sim, um órgão de cristal. Tudo pode acontecer numa vagina, por mais cuidado que a gente tenha.

Voltando ao lado B do sexo, o que dizer dessa prática tão trivial que mal conheço e já admiro pacas? Do primeiro teste em diante, pode-se afirmar que virei uma eletricista em série (e que os homens que gostam, amam). Poucas coisas me emocionam mais num encontro do que a ideia de que não estou sendo apenas caçada, dominada ou submetida. É um pouco como se o casal pudesse esmagar a simbologia sinistra do patriarcado usando apenas um dedinho — ou o que achar melhor.

Na manobra do fio terra, não é só a “alternância de poder na cama” que interessa. Se todos os homens hétero percebessem que também existe prazer e poder em ser penetrado, talvez soubessem mais uma série de coisas sobre eles mesmos, os relacionamentos, o universo e tudo mais. Esse assunto não deveria ser um constrangimento; constrangimento deveria ser chegar na gatinha achando de verdade que a emulação de pornô clássico vai proporcionar o prazer digno de berros que as atrizes fingem sentir. Só de espiar de relance um XVídeos convencional, minha vagina tranca de dor.

Ultimamente, me pergunto se é coincidência que homens que curtem ser penetrados sejam mais cuidadosos na hora de penetrar alguém. Sempre. Parece até que esses aprenderam que um corpo é sempre um templo, seja ele do gênero que for. Que não precisa arrombar portas quando você tem a chave e a fechadura. Que o cu deles é idêntico ao meu. Que está tudo bem com querer ou não querer ser penetrado, mas, nesse caso, pelos motivos certos.

 

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“Macho, discreto e fora do meio”: o preconceito dentro do armário
   13 de junho de 2022   │     16:44  │  0

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Por : Renan Quinalha – Professor de Direito (Instituições Judiciais e Cidadania) da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordenador Adjunto do Núcleo Trans Unifesp. Doutor em Relações Internacionais na Universidade de São Paulo (IRI – USP). Mestre em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Graduado em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (FDUSP).

Em um mundo inundado de smartphones e marcado pelo amplo acesso a novas tecnologias, notam-se mudanças profundas nos modos de vivência da sexualidade e dos afetos.

Para o bem e para o mal, a depender da perspectiva, aquele amor romântico da geração dos nossos avós entrou em extinção. Relações monogâmicas e exclusivas vão dando lugar a relacionamentos abertos ou poliamorosos. Aplicativos possibilitam encontros para todos os tipos de finalidades de modo cada vez mais objetivo e direto. A intensidade das interações parece perder em profundidade para ganhar em amplitude, com trocas cada vez mais fortuitas e menos duradouras.

Até aí, ninguém deveria ter saudade mesmo do amor romântico dos avós, quando a liberdade individual e a escolha pessoal eram suprimidas por convivências familiares ou imposições externas das quais era impossível de escapar, com uniões que deveriam durar eternamente.

No caso dos homossexuais, proliferaram os aplicativos de pegação, substituindo, em grande escala, as outras formas mais tradicionais de sociabilidade e de interação dentro dessa comunidade. E uma das figuras mais frequentes nas telas dos celulares navegando por essa modalidade de aplicativos é o famoso tipo “macho, discreto e fora do meio”.

Diversas razões estruturais ainda dificultam que as pessoas homossexuais vivam com naturalidade sua orientação sexual. A reprovação da família, a dificuldade no trabalho, o preconceito dos amigos, o bullying nas escolas, a representação caricata na televisão, enfim, uma série de instrumentos de que se vale uma sociedade machista e homofóbica para restringir as possibilidades de vivência mais plena da sexualidade e do desejo.

Assim, fazer uma crítica a esse tipo “macho, discreto e fora do meio” não tem o objetivo de querer tirar todo mundo do armário. Assumir-se, sem dúvida, é um dos atos políticos mais importantes para uma pessoa homossexual. Isso facilita a auto-aceitação e o respeito dos que estão à sua volta. Mas cada um tem um tempo e um processo próprio. Essa trajetória de cada subjetividade precisa ser lida em seu contexto e há que se ter tolerância para esse diálogo, pois a culpa geralmente é da pessoa, mas das estruturas que a oprimem.

O que não se justifica, em hipótese alguma, é a propagação de preconceitos por trás de enunciados machistas e homofóbicos. É fato que os aplicativos de pegação não inventaram os preconceitos, mas eles potencializaram e expuseram de modo mais escancarado essa dimensão tão preconceituosa no interior do universo gay.

O confinamento do sexo furtivo, sigiloso, discreto e fora do meio não foi uma escolha, mas uma imposição de uma sociedade que não aceitava a homossexualidade e não tolerava a vivência pública de outras formas de desejo e de afeto que não fossem aquelas reconhecidas pela heteronormatividade.

O que era “normal” para os gays nessa época eram as saunas, os banheiros públicos, a escuridão de becos e parques, enfim, os lugares em que eram isolados a uma distância segura e sob vigilância de uma sociedade que não os acolhia e que não permitia sua circulação em espaços mais tradicionais. Assim, não há do que se orgulhar dessa condição histórica de isolamento, felizmente cada vez menos presente, ainda que persistente.

É verdade também que os homossexuais não viveram apenas passivamente essa condição que lhes foi imposta; antes, eles ressignificaram o gueto como espaço da sociabilidade gay, das trocas e aprendizados mútuos, da realização do desejo e dos fetiches, da transgressão das cercas impostas. Enfim, transformaram essas “prisões” em um lócus de construção de identidade, de reinvenção do corpo e de solidariedade de grupo. Foi essa união que permitiu, em última instância, romper os muros dos gueto e a ocupação de espaços outrora interditados para os que desejavam pessoas do mesmo sexo.

Não foram os “machos, discretos e fora do meio” que, do aparente conforto de suas vidas duplas e clandestinas, conquistaram os direitos que nos beneficiam hoje. Foram as bichas, as afeminadas, os viados, as travestis, as pintosas que se expuseram, sofrendo mais duramente o peso da discriminação, mas abrindo mais espaço para nossa cidadania ainda incompleta.

Você não precisa ser ou agir como elas e eles. Mas você tem o dever de desconstruir os preconceitos que você dirige contra essas pessoas, ainda que tenha dificuldade para desconstruir os preconceitos que dirige contra si mesmo. Sempre lembrando, contudo, que os direitos dos homossexuais não foram encontrados dentro de um armário ou na escuridão de um gueto.

E, se hoje estamos aqui, com possibilidade de casar, adotar filhos, andar de mãos dadas nas ruas, irmos a baladas e outros espaços de sociabilidade LGBT à luz do dia, é porque essas pessoas tiveram a coragem e a ousadia de romper com os lugares que lhes eram impostos. Elas não aceitaram os limites do preconceito.

Portanto, fazer hoje essa escolha por reproduzir preconceitos como se fossem apenas “gosto” é reforçar a estigmatização que a sociedade patriarcal, machista e homofóbica impunha às gerações que nos antecederam. Em outras palavras, é introjetar a violência simbólica do macho, discreto e fora do meio, que precisa esconder sua sexualidade porque não a aceita com naturalidade.

Gosto também pode ser preconceito. E muitas vezes é exatamente isso de que se trata. Os gostos são construídos socialmente, não são dados de um desejo natural, biológico cuja origem seria insondável na alma humana. Não é por acaso que você diz não gostar de homossexuais afeminados, pouco discretos e que vivem “no meio”. Você não nasceu com essa opinião, mas foi educado pelos valores machistas e homofóbicos na sua sociabilidade a discriminar essas pessoas.

É certo que ninguém vai te obrigar a sentir tesão do mesmo modo que todos os outros sentem. Cada um tem seus fetiches e fantasias sexuais e não cabe a ninguém fiscalizar o desejo alheio. No entanto, é pertinente e necessário sim problematizar as normas, os valores e instituições que conformam nossos gostos, questionando sempre e até que ponto estamos reproduzindo papeis que deveríamos desconstruir.

Mesmo sendo “macho, discreto e fora do meio”, você pode e deve se aceitar. Mais do que apenas reproduzir a postura dos que não te aceitam, você deve é lutar para que aceitem. E, para isso, é preciso cara no sol, empatia com seus pares e celebração da memória dos que lutaram para chegarmos até aqui, sem reproduzir os valores machistas e homofóbicos que também te afetam.

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Homossexualidade na terceira idade: como ela é e quais os desafios?
   11 de junho de 2022   │     15:21  │  0

Artigo

Por: Toni Reis – Graduado em Letras e Pedagogia, Especialista em Sexualidade Humana, Especialista em Dinâmica dos Grupos, Mestre em Filosofia, na área de ética e sexualidade, Doutor e Pós-doutor em Educação, LGBTIfobia na educação, Diretor Presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Integrante do Comitê Executivo da Rede GayLatino e Diretor Executivo do Grupo Dignidade

Ter uma boa qualidade de vida na terceira idade no Brasil é uma meta nem sempre alcançada. Problemas como a violência, a falta de acesso à saúde, educação ou mobilidade são alguns exemplos da ausência de políticas públicas efetivas. E a homossexualidade na terceira idade? Para a população idosa homossexual, reforça-se ainda mais o preconceito da sociedade.

Uma pesquisa realizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) denuncia que um LGBTQI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, queer e intersexuais) é agredido no Brasil a cada duas horas e, a cada 19 horas, um é assassinado.

Toni Reis*, Diretor Presidente da Aliança Nacional LGBTI+, afirma que apesar dos avanços e conquistas da comunidade, ainda há desafios a serem vencidos. “Em 1990, nós tínhamos apoio de 5% da população. Hoje, nós chegamos à 67% de apoio no Brasil. As principais barreiras são as interpretações fundamentalistas da Bíblia e a heteronormatividade”.

Quanto à homossexualidade na terceira idade, Toni alerta que a população idosa sofre duplo preconceito no Brasil, e responde a questões relacionadas ao tema.

São muitos os desafios da população LGBTQI+ no Brasil. Você poderia apontar quais barreiras socioculturais impedem o avanço dessas pautas?

Enfrentamos o preconceito, o estigma, a discriminação e a violência contra nossa comunidade. Na idade média, nós éramos considerados doentes ou éramos considerados pecadores. Muitos de nós fomos queimados na fogueira. Depois colocaram a gente como criminosos. Inclusive, ainda há 70 países no mundo onde é crime ser homossexual. Éramos considerados doentes até dia 17/05/1990, quando a Organização Mundial da Saúde retirou código 302.0. Então há esse tipo de preconceito. As pessoas acham que nós somos pecadores ou fora da norma. Existe uma norma em que o correto e normal é ser heterossexual. Essas são as duas grandes barreiras, a heteronormatividade e as questões do fundamentalismo religioso.

Quanto à homossexualidade na terceira idade, a discriminação é maior?

Sim. Infelizmente a nossa cultura promove muito a juventude e a saúde, diferententemente da cultura japonesa ou chinesa, em que os mais idosos são muito respeitados. Então, há um duplo preconceito em relação às pessoas idosas. Inclusive, acabam não saindo. Ficam mais em casa por causa dessa desvalorização da pessoa homossexual com mais idade.

Quais são os principais problemas enfrentados pela população idosa homossexual?

Como a pessoa não casa, apesar de agora já estar melhorando, tem muita gente que não tem filhos e acaba muitas vezes indo para um abrigo ou uma casa de repouso onde tem que “voltar para o armário”.  A pessoa viveu a vida inteira abertamente com sua sexualidade e, quando vai para essas casas de abrigos, muitas vezes ligados a questões religiosas, é obrigada a “voltar para o armário”. Talvez esse seja um dos principais problemas da nossa comunidade no que diz respeito à homossexualidade na terceira idade.

Há exemplos de outros países que poderíamos adotar em relação à população idosa homossexual?

Sim. Nós já temos casas de repouso na Holanda e na Espanha específicas para a comunidade LGBT. Pessoalmente, eu acho que é um gueto e talvez uma solução muito simplória. Creio que é muito importante, quando se trata da homossexualidade na terceira idade, que as pessoas possam ir para as casas de repouso onde todos respeitem a identidade de gênero e também a sua orientação sexual.

 

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Saí do armário depois dos 40
   1 de junho de 2022   │     12:38  │  0

Por: André Bueno – Profissional de Marketing e Comunicação, com extensa experiência em geração de demanda e aceleração dos negócios. Voluntário em projetos relacionados à Diversidade e Inclusão e causas LGBT+.

Criada em 1988 pelo psicólogo gay, Robert Eichberg e por Jean O´Leary, ativista lésbica, o Dia de Sair do Armário, celebrado em 11 de outubro, tornou-se uma data internacional para aumentar a conscientização sobre a importância de sair do armário e abordar temas sobre sexualidade LGBT. A data foi escolhida por ser o dia do Marco Nacional de Washington para Direitos de Gays e Lésbicas.

Para abordar esse tema, O Blog EternamenteSou conversou com Ricardo Alves da Silva, 53, professor, nascido e criado na cidade de São Paulo. Ricardo divide conosco sua experiência de vida, como foi sua decisão de sair do armário e fala sobre o impacto dessa escolha na sua vida.

Ricardo foi criado com 8 irmãos. Suas primeiras experiências homossexuais aconteceram ainda na infância, durante as brincadeiras de rua com amigos, os conhecidos “troca-trocas”. Sua primeira vez também foi com um rapaz, aos 15 anos. Entretanto, suas relações amorosas na maior parte de sua vida, antes de se assumir, foram com mulheres. Ele afirma que nunca se sentiu realizado nas relações com suas companheiras. Em uma dessas relações, manteve uma “amizade colorida” com um rapaz durante 5 anos às escondidas. O medo de assumir sua homossexualidade falava mais alto.

“Sentia pavor de ser rejeitado pelos meus pais, pelos membros da igreja católica, na qual eu frequentava. Temia o julgamento das pessoas na ruas, não queria ser apontado ou xingado pelos outros e tinha medo da violência que poderia sofrer. Na infância e adolescência sofri o que hoje chamam de bullying pelos colegas de uma gráfica onde trabalhei, mas quase não passei por isso com os meus colegas do bairro, da escola ou mesmo em casa porque jogava futebol. A bola me poupou”, revela Ricardo.

Ricardo chegou a estudar num seminário, pois, na juventude, sentiu que sua vocação era ser padre, mas permaneceu por pouco tempo. Entendeu que não era esse o seu destino. Buscou outros caminhos profissionais e formou-se em filosofia, história e psicologia e dedicou sua carreira como professor dessas disciplinas.

Ele conta que sempre foi um homem politizado e, desde muito jovem, participava de manifestações políticas, greves, apoiava causas em prol da educação. No entanto, a questão de assumir sua sexualidade foi um tabu para ele mesmo durante a maior parte de sua vida. Ele diz que lhe faltou coragem.

Ricardo revela que se assumiu homossexual há 10 anos, aos 43 anos. Admite que perdeu oportunidades de engatar relacionamentos amorosos com homens por quem se apaixonou. Um ex-namorado chegou a pressioná-lo, mas ele não cedeu. Dois amigos o incentivaram muito, mas essa influência não foi o suficiente para ele se assumir perante à sociedade.

“Sentia que não seria aceito no meu ciclo social, pela sociedade em geral e dois amigos mais chegados me chamavam de “mureteiro” para que eu me assumisse homossexual. Sofria pressão dos dois lados. Eu não tinha coragem de viver minha sexualidade”, ele conta.

Foi ao conhecer um ex-namorado que Ricardo finalmente sentiu motivação para sair do armário e se viu, pela primeira vez, protagonista da sua vida. Ele nos detalha como foi este momento:

“Tudo tem o seu tempo e eu tive o meu. Com base na minha experiência, teve um momento em que eu não quis mais viver uma relação escondida. Quis estar inteiro e me senti pronto pra isso. Reuni os amigos mais próximos e contei sobre ele e que iríamos morar juntos. Fui acolhido pela turma. Como é bom me sentir livre, ser autêntico e dar menos importância para o julgamento dos outros.”

Há dois anos ele reencontrou uma ex-aluna que participava da ONG EternamenteSou. Ela o convidou para um dos evento Café & Memórias da ONG, no qual  teve a oportunidade de conhecer outros LGBTs da sua geração, alguns com histórias de vida similares, outros com um histórico diferentes e que essa troca tem sido um processo de constante aprendizado. Veja o que Ricardo fala sobre como tem sido esta experiência:

“Sinto-me muito à vontade na EternamenteSou. Participar deste grupo foi um divisor de águas na minha vida, pois foi e está sendo um processo de cura. Para quem ainda não saiu do armário, eu diria que cada um tem o seu momento, não importa a idade. É importante respeitar o tempo de cada um. Vejo que é muito saudável assumir o que somos. O ganho emocional é maravilhoso. É libertador!”

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Como a afetividade entre homens gays é gerida pelas normas de gênero
   16 de maio de 2022   │     0:00  │  0

Proponho uma reflexão sobre a aliança afetiva entre as pessoas. Se nos detivermos a mirar, veremos quão surpreende é a maneira como os afetos se constroem e se estabelecem e, se em algum momento chegamos a pensar que “o afeto não é atravessado pelas normas de gênero”, deixaremos a ideia de mão. Nada mais falso que isso. Até porque o afeto não é algo que simplesmente surge; isto é, o desejo pode ser algo um tanto inexplicável dada sua tamanha complexidade, mas a pergunta fundamental é: quanto do nosso desejo pode ser construído e formatado por normas culturais e aprendizagens sociais?

O afeto carrega em seu íntimo fortes intervenções do que se articula e se propõe como “belo”, como “amável” e como “desejável”, e todos esses adjetivos só têm sentido levando em conta o contexto sociocultural do qual fazem parte e no qual emergem. Assim, é impossível atribuir um significado a um desses adjetivos fora de um entorno cultural.

Em alguns círculos de pessoas LGBTQIA+, pode ser comum haver um tom crítico quando algum relato sobre as relações afetivas de um homem gay remete a padrões hegemônicos e faz-nos pensar por que alguns homens gays, constituindo um grupo social ainda tão discriminado, terminam assumindo uma postura demasiado conservadora (no modo de vestir, de se expressar, de pensar politicamente, de projetar os anseios da carreira, de amar, etc.). Esse modelo conservador sob o qual vivem tantos homens gays (que também se trata de um modelo sociocultural) nos remete ao que, no âmbito dos estudos queer, podemos chamar de “homonormatividade”. Ou seja, padrões normativos de viver como homens gays, que criam um estândar para o que seria um gay “respeitável” e um gay “palatável” por uma sociedade reacionária que tem a heterossexualidade compulsória como um dos seus pilares.

É possível que não nos demos conta, nem a devida dimensão de importância a como os homens gays, hegemonicamente, se relacionam. Essa tendência homonormativa atravessa essas vidas e projeta as alianças que se dão entre elas. Nesse espaço, as normas de gênero fecham o cerco e fazem o seu espetáculo: gays bastante masculinos, brancos, com seus músculos, penteados, barba feita e looks bem postos, que só se atraem por gays bastante masculinos, brancos, com seus músculos, penteados, barba feita e looks bem postos. Percebem como as normas de gênero atuam sobre esses corpos? Fazem criar a imagem de homem gay desejável como aquele que reforça ao máximo os ideais de uma masculinidade hegemônica. Isso, portanto, sugere a pergunta: quanto do nosso afeto se consolida por estratégias de opressão?

Nesse sentido, se essa dinâmica acaba projetando-se como a regra, inevitavelmente outros grupos de homens gays passarão a não ser alvos do nosso desejo. Em geral, são os gays com fortes marcadores de feminilidade, com uma voz não tão grave, que não fazem uso de uma linguagem adaptada pelo masculinismo, que são muito expressivos (os julgados “escandalosos”), que pintam as unhas, usam eyeliner ou compram algumas peças nas sessões femininas das lojas. E também, numa sociedade definida em termos étnico-raciais, há deslocamentos de raça e etnia nessa afetividade gay; assim, os gays negros, indígenas, não brancos tornam-se “menos desejáveis” para os homonormativos. E se adicionarmos a esse nó uma questão de classe, a homonormatividade se revela também classista: o homem gay que goza de uma respeitabilidade social também, necessariamente, circula nos espaços de poder econômico; é um empresário, é um arquiteto que modela o seu apartamento com móveis planejados, é um professor universitário cuja sexualidade, dentro do seu departamento, passa praticamente desapercebida e ele é quase visto como ‘hétero’. E tudo isso, ainda, entrelaça-se com a indústria da beleza, que espezinha os sujeitos e os transforma discricionariamente: a barba (marcador de gênero) tem de estar bem aparada, o cabelo tem de ser cortado pela barbearia cool do bairro que serve chope (marcador de gênero) enquanto se está esperando, o abdome e o peitoral têm que seguir à risca os estereótipos corporais (marcador de gênero).

Dessa forma, as normas de gênero se inscrevem nos sujeitos, alterando os seus corpos, e fabricam os homens gays que podem ser alvo do “afeto”. E os entrecruzamentos são pouquíssimos: poucas vezes vemos um casal de homens gays em que um deles é engenheiro mecânico e o outro é vendedor de loja de departamento (as riquezas têm que se acumular dentro de um mesmo núcleo para que não se dispersem); ou em que um deles está em dia com a academia e o outro é super afeminado e tinge o cabelo de azul turquesa (o reino masculinista precisa de uma reafirmação constante, se não se desintegra). Normalmente, o que se encontra visibilizado como “casal gay”, que constitui o que acaba se tornando como o casal gay “respeitável”, é uma união necessariamente monogâmica, com idealizações de futuro familiar, com um cachorrinho, com uma carreira de vento em popa e corpos impecavelmente bisturizados pelos estereótipos de masculinidade.

E o resto se torna gente menos amável, menos alvo do desejo, menos possível para desenvolver uma relação afetiva. Não é completamente esdrúxulo que essa construção pré-encaminhada da afetividade ocorra; afinal, as pessoas constantemente (e até inconscientemente) reproduzem estruturas sociais perversas, ao mesmo tempo que essa reprodução é em algum nível sempre uma produção. Entretanto, será que realmente não podemos em alguma medida desconstruir o nosso desejo e afastá-lo dessa herança racista, classista e masculinista?

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