História de Gay Talese sobre espionagem sexual num motel tem caso similar em Goiânia
   3 de maio de 2016   │     0:00  │  0

Um dos maiores repórteres americanos, adepto do novo jornalismo, conta, em reportagem e livro, a história de um empresário que espionava clientes mantendo relações sexuais.

Gay Talese, um dos expoentes do novo jornalismo, é adepto da tese de que a realidade é mais ampla do que imaginamos e escarafuncha assuntos por décadas

Gay Talese, um dos expoentes do novo jornalismo, é adepto da tese de que a realidade é mais ampla do que imaginamos e escarafuncha assuntos por décadas

No início da década de 1980, o repórter Marco Antônio da Silva Lemos — hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios —, publicou uma reportagem que alcançou ampla repercussão: funcionários de um motel entre Goiânia e Aparecida de Goiânia estavam espionando clientes que mantinham relações sexuais. Segundo a denúncia, havia um “espelho com fundo falso” que permitia ver o que acontecia numa das suítes.

O motel era propriedade de dois sócios, L. S. e I. A. A Casa do Amor, obviamente com nome em francês para ficar mais chique e up to date, tornou-se um local a se evitar. Mesmo outros motéis foram abandonados, provisoriamente, pelos clientes. Um dos sócios, que era político, apareceu na redação do jornal “Diário da Manhã” e contestou a informação de que seus funcionários ou eles próprios espionavam clientes. Ouvido pelo Jornal Opção, Marco Antônio disse que, apesar da denúncia, não houve nenhuma investigação séria a respeito. A única coisa certa é que os funcionários deixaram de sentir prazer com o prazer dos outros.

Em seguida, espalharam, não se sabe quem, uma série de boatos. Um deles dizia que havia até gravações de cenas calientes nas quais os “modelos” eram frequentadores de motéis goianos. Nunca se provou nada a respeito. Mas falou-se nisso durante algum tempo. Talvez tenha sido um prenúncio das atuais lendas urbanas. Mas a história da Casa do Amor é, tudo indica, verdadeira.

No domingo, 24, a reportagem “O dono de motel que espionou a vida sexual de seus hóspedes por décadas”, de Ana Pais, da BBC, relata uma história parecida com a de Goiânia. No início de 1980, o repórter Gay Talese, um dos cultores do novo jornalismo ou jornalismo literário, recebeu uma correspondência em que um empresário americano informava que havia adquirido um hotel, na cidade de Aurora, no Colorado, com o objetivo de “satisfazer suas tendências voyeuristas”.

O empresário havia instalado “grelhas de ventilação falsa no teto de vários dos 21 quartos para poder espiar os hóspedes enquanto estes mantinham relações sexuais”. Como Gay Talese estava no auge, apontado como um dos principais contadores de histórias do jornalismo americano, o homem queria narrar o caso dos anos em que espionara homens e mulheres transando. Chegou a convidar o jornalista para observar casais mantendo relações sexuais. De uma curiosidade infinda pelos segredos mais recônditos dos homens, o repórter aceitou o convite e observou “um casal fazendo sexo oral sem pedir permissão”.

Livro de Gay Talese sai em julho, mas já pode ser encomendado nos sites da Livraria Cultura e da Amazon. É a história de um voyeur num motel dos Estados Unidos

[Gay Talese é autor de um livro estupendo sobre a máfia ítalo-americana. Para obter informações, tornou-se amigo de um mafioso, frequentou sua casa e conviveu com sua família. O objetivo era entender a organização criminosa por dentro e entender como viviam os chefões, para além de preconceitos ou do jornalismo meramente policial. O resultado, exposto no livro “Honra Teu Pai” (Companhia das Letras, 512 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), é jornalismo de primeira linha e, pode-se dizer, um trabalho antropológico irrepreensível. Os mais heterodoxos poderão chamá-lo de “antropologia participante”. Chegaram a criticá-lo, sobretudo pela amizade com o clã mafioso Bonanno. A excelência do livro — muito superior ao romance “O Poderoso Chefão” (o que salva a obra, paradoxalmente, é o excelente filme de Francis Ford Coppola), de Mario Puzo — silenciou seus críticos.

Homem elegante, que usa ternos refinados e não abdica de um bom chapéu, Gay Talese aprecia mergulhar profundamente nos assuntos que investiga. Pessoas famosas, “esgotadas” pela imprensa, não lhe chama a atenção. No Brasil quem lhe interessa é a cantora Simone, que tem “uma voz muito interessante” e “estilo”.

Ao pesquisar sobre o motel americano, ficou sabendo de um assassinato, mas decidiu não denunciá-lo. Ao perceber que um de seus hóspedes traficava drogas, Gerald Foos esperou que saísse, entrou no quarto, roubou as drogas e as destruiu. Pouco depois, o homem, culpando a namorada pelo desaparecimento das drogas, estrangulou-a.

O que Gerald Foos fez? Anotou a história, detalhe por detalhe, mas não denunciou o homem à polícia. Porque, tendo roubado as drogas, poderia também ser indiciado. Ao ler as anotações do empresário, Gay Talese decidiu não entregá-lo às autoridades. “Passei algumas noites sem dormir, me perguntando se deveria entregar Foos. Mas pensei que já era tarde demais para salvar a namorada do traficante”, escreveu o repórter no texto publicado na “New Yorker”.

Criticado, ao revelar a história na revista, na edição de 11 de abril deste ano, disse à BBC Mundo: “Tenho 84 anos e sou jornalista há quase 65. Não acho que tenha de me defender”. Sua reportagem, “O Motel do Voyeurista”, provocou sensação e questionamento. Um livro detalhando a história, com o mesmo título, será publicado em julho. “The Voyeur’s Motel” (Grove Atlantic, 240 páginas) já pode ser encomendado nos sites da Amazon (R$ 56,55) e da Livraria Cultura (R$ 57,29).

Céu e inferno

Por que Gay Talese esperou 36 anos para contar a história em reportagem e livro? Porque não trabalha com fontes anônimas. Enquanto Gerald Foos, o dono do motel e voyeur, não autorizou-o a contar a história mencionando seu nome, com todas as informações, o repórter atilado esqueceu suas múltiplas anotações no fundo de uma gaveta.

Gerald Foos adquiriu o motel em 1969 e, com o apoio de sua mulher, Donna, começou a espionar os hóspedes. “Quando um casal atraente chegava, Foos e a mulher colocavam os dois em um dos quartos com as grelhas no teto. Foos e Donna então subiam para a parte de cima para poder espiar o casal.”

O empresário registrou as histórias de 1969 a 1995, “quando vendeu” o motel. Nas conversas com Gay Talese, Gerald Foos admitiu que é voyeurista, mas o repórter descobriu ao menos um deslize. Ele disse que começou a espionagem sexual em 1966, mas só comprou o motel em 1969. Suas anotações dão conta de encontros entre chefes e suas secretárias e relatos de sexo grupal (sobre a vida sexual pouco ortodoxa dos americanos, Gay Talese escreveu “A Mulher do Próximo”. A movimentada vida sexual dos goianienses, inclusive num frequentadíssimo clube de swing, com pessoas das classes alta e média, ainda não mereceu registro equivalente).

Em 2013, com os crimes prescritos, Gerald Foos finalmente deu autorização para Gay Talese publicar a história e revelar seu nome. O repórter recuperou as anotações, as suas e as do empresário, e publicou o artigo na “New Yorker”. “Esperei 30 anos para conseguir que me liberasse o uso de seu nome. Se não tivesse conseguido, nunca teria escrito ‘O Motel do Voyeurista’”, afirma o jornalista e escritor.

Porém, se a história consagra ainda mais Gay Talese — Sam Mendes será diretor do filme baseado na história do livro —, deixou Gerald Foos em maus-lençóis. Logo após a publicação do texto na revista, começou a ser ameaçado de morte e algumas pessoas jogaram ovos na porta de sua casa. Ele teve de chamar a polícia para protegê-lo.

A polícia de Aurora disse à BBC que não há registros policiais a respeito de Gerald Foos e de sua mulher. Questionado pela BBC sobre a credibilidade do empresário como “fonte jornalística”, Gay Talese afirma que é uma “estupidez” discutir o assunto. Sugeriu à repórter que lesse o livro e não apenas a reportagem, que contém “10% da história”.

Embora sempre cortês, Gay Talese explicitou que prefere responder perguntas “sérias e críticas”. “Pelo menos você não estaria me questionando por uma pequena parte. Quero ser questionado pelo todo.”

Jornalistas tendem a não entender, ou não querer compreender, o que está dizendo Gay Talese. Em geral, nós pensamos que ao reportar um fato, quase sempre às pressas, estamos publicando a realidade na sua inteireza. Na verdade, estamos fazendo um breve recorte na realidade, eliminando suas arestas, e tornando o assunto palatável para os leitores. Mas as contradições da realidade, sua amplitude, geralmente ficam de fora da maioria das reportagens. Gay Talese faz uma espécie de “jornalismo da lentidão”, escarafunchando os fatos por longo tempo, maturando suas ideias a respeito, e só quando percebe que tem clareza e domínio amplo sobre o tema é que escreve suas reportagens, que, na prática, são ensaios.

Uma curiosidade: num de seus livros, “Vida de Escritor” (Companhia das Letras, 512 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), o jornalista conta que, ao visitar a Itália, quando o chamaram de “Talese”, nem olhou, pois pensou que não era com ele. Descobriu que, no país de Dante e de don Corleone, não se pronuncia “Talise”, como nos Estados Unidos, e sim “Talese”.
Gay Talese está falando de hotel ou motel? O texto da BBC opta por motel — então deixei assim.

Fonte: Jornal Opção

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