Livro descreve histórias do lesbianismo no Brasil antigo
   5 de dezembro de 2014   │     0:00  │  0

Livro interessantíssimo de Ligia Bellini. Descreve o cotidiano e perseguição a mulheres que namoravam outras mulheres na Bahia, nos anos 1591.

Livro interessantíssimo de Ligia Bellini. Descreve o cotidiano e perseguição a mulheres que namoravam outras mulheres na Bahia, nos anos 1591.

Mais uma prova do quanto a subcultura lgbt é muito mais antiga do que Foucault e os alienados teóricos queer imaginam e gostariam que fosse,  para assim mais facilmente destruir nossa  afirmação identitária GAY! (GAY desde o sec.13 = homossexual, rapaz alegre!)

Neste mês de dezembro, o Espaço do Autor da Editora da Universidade Federal da Bahia traz um bate-papo com Ligia Bellini, autora do livro A Coisa Obscura. A obra é uma análise de documentos e registros das confissões e denúncias de casos de mulheres sodomitas e feiticeiras, feitos pela Inquisição portuguesa por ocasião das visitações ao Brasil.

Graduada em História pela Universidade Federal da Bahia, Ligia Bellini é autora de diversos artigos sobre história da cultura do mundo luso-brasileiro, e é co-organizadora do livro Formas de crer: ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIV-XXI, também publicado pela EDUFBA. Na entrevista cedida pela autora a assessoria de imprensa da EDUFBA, Lígia  fala sobre a obra, sua trajetória profissional, suas pesquisas e futuros projetos.

Entrevista feita por Mariana Sales

1. Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória profissional. Quando e como surgiu o interesse pela história da cultura do mundo luso-brasileiro no período moderno?

Na pesquisa que resultou em A coisa obscura, que envolve aspectos culturais do mundo luso-brasileiro (ideias religiosas, representações da mulher e seu corpo, entre outras), o uso frequente de concepções anatômicas em escritos teológicos chamou minha atenção para o fenômeno de transmissão de conceitos do corpo de uma área do saber para outra, assim como para a importância do tema naquele contexto.  Foi desta forma que cheguei ao tema do projeto de doutoramento que apresentei e desenvolvi, de 1988 a 1992, na Universidade de Essex, no Reino Unido — noções sobre o corpo humano em Portugal no século XVI. Do exame de representações do corpo emerge um quadro matizado de afiliações dos pensadores portugueses ao humanismo renascentista, ao neoplatonismo, à escolástica aristotélica e às tendências ligadas à observação empírica e experimentação que começam a desenvolver-se nos inícios da época moderna. O trabalho evidencia como noções do corpo associam-se a atitudes intelectuais, crenças e outros aspectos da cultura local, com seu escopo de relações estendendo-se muito além do domínio da medicina. O doutorado contribuiu em muito para que meus interesses de pesquisa se vinculassem em definitivo à história cultural do Portugal moderno, área de investigação à qual tenho me dedicado prioritariamente até hoje.

2. A Coisa Obscura traz casos de mulheres brasileiras acusadas de sodomia pela inquisição no final do século XVI no nordeste do Brasil. Como foi o processo de pesquisa para este livro? O que te motivou a escrevê-lo?  

Foi no mestrado, que cursei de 1983 a 1987, que tive contato mais estreito com conceitos, métodos e problemas da História Social e da História da Cultura, áreas em que trabalho desde então. Entre os autores que tiveram mais impacto na minha formação estão E. P. Thompson, Carlo Ginzburg, Philippe Ariès e, no Brasil, Laura de Mello e Souza e Maria Odila Leite Dias. Michel Foucault também foi uma grande inspiração. Suas abordagens me levaram ao interesse em questões pouco exploradas com respeito às mulheres, sua sexualidade, suas experiências mágicas, enfim, o modo como viviam em terras brasileiras, nos inícios da época moderna, assim como sobre as concepções de legisladores e membros do clero católico sobre elas e seu corpo. Desenvolví o estudo com base em documentação que inclui confissões, denúncias e processos do Santo Ofício que versam sobre casos de mulheres sodomitas; legislação civil e eclesiástica; manuais de confissão e penitenciais; e o registro de discussões teológicas a propósito do assunto. Parte destas fontes foi coletada em bibliotecas e arquivos europeus e generosamente cedida por Luiz Mott, meu orientador no mestrado.

3. Em que se difere o debate sobre sexualidade feminina no período colonial e hoje? Quais são as características que ainda permanecem?

É difícil apontar algo que permanece, quando se compara os dois períodos. Vou me ater aqui às ideias que predominavam nos começos da época moderna, menos conhecidas. No universo acadêmico daquele período, houve mudanças nas atitudes e ideias em relação à mulher, sob o influxo de fatores internos e externos ao domínio intelectual. Deve-se destacar o humanismo em suas várias manifestações, em particular o pensamento neoplatônico, que divulgou noções mais positivas sobre a mulher nas áreas da teoria do amor e da política. Também o Neoestoicismo contribuiu para uma valorização do sexo feminino, como resultado da valorização da dignidade do indivíduo em geral, por sua capacidade de atingir um estado de indiferença em relação às vicissitudes de caráter pessoal e político, assim como de praticar a virtude da constantia. Entre os fatores sociais e políticos das transformações nas concepções da mulher, pode-se mencionar as novas divisões de classe, que implicaram o surgimento de um grupo de mulheres de elite que participavam mais ativamente de certos rituais da vida pública. A mudança não se deu de forma homogênea nos diferentes campos do saber. Ela é mais perceptível, por exemplo, na medicina e na ética do que na teologia. O próprio aparecimento, nos séculos XVI e XVII, de um número significativo de tratados centralmente dedicados ao corpo feminino é indicativo de um maior interesse, por parte dos médicos, em compreender as particularidades deste. Dentro dos limites do seu tempo, podemos dizer que emerge uma atitude mais positiva em relação à mulher, se comparada ao modo como esta e seu corpo eram abordados em textos eruditos do período imediatamente anterior. Entretanto, as abordagens encontram-se ainda sob influência da matriz de pensamento herdada da antiguidade, associando a polaridade macho/fêmea a outras como forma/matéria, ato/potência, direito/esquerdo, bem/mal, limitadas pelo desejo de manter a síntese escolástica. Nisto consiste seu caráter conservador. Mas alguns autores médicos, fundamentados nas teorias de Galeno e do Corpus Hipocrático, e por vezes em sua própria observação, punham em cheque noções aristotélicas a propósito da inferioridade e imperfeição femininas.

O sistema de Aristóteles, como se sabe, postula que, entre os animais, o macho é aquele capaz de gerar no outro, enquanto a fêmea gera em si mesma. A fêmea é caracterizada pela falta, é passiva, nela predominando humores frios e úmidos. O sexo do novo ser, na geração, é determinado, no momento da concepção, unicamente pelo sêmen do macho. Galeno, em que pese em muitos pontos concorde com essa caracterização, apresentada aqui de forma muitíssimo sintética, dela difere quanto à eficácia do sêmen na mulher. Para Galeno, o sêmen feminino influía na forma e matéria do embrião, porém este sêmen é mais frio e menos ativo que o do macho.

Em geral, os doutores do Renascimento acreditavam que características físicas da mulher eram a causa dos atributos psicológicos tipicamente femininos. Características dos humores predominantes na mulher — frios e úmidos — eram associadas virtualmente sem mediação a operações mentais. A physis e a psyche eram consideradas como fazendo parte da mesma ordem. As mulheres teriam maior capacidade de imaginação porque corpos físicos frios e úmidos seriam mais passíveis de sofrer metamorfose. A isso também eram atribuídas a inconstância, a falta de firmeza e a capacidade de enganar. A mulher seria mais mole em caráter, da mesma forma que o era fisicamente. Por esta razão, sentiria mais medo, compaixão, e seria mais capaz de amar. Os efeitos do útero contribuiriam para diminuir sua racionalidade e aumentar sua paixão. O parto a predisporia a uma maior tolerância à dor.

Em suma, são concepções muito diferentes das atuais, embora às vezes se encontre traços delas na contemporaneidade.

4. As mulheres estão ganhando cada vez mais voz e lutando por um espaço que antes era exclusivo aos homens. O que tem motivado este fenômeno? Qual o papel do feminismo neste contexto? 

O papel dos diferentes feminismos foi e continua sendo vital. Como nos inícios da época moderna, o crescimento do espaço das mulheres deve-se, em minha opinião, a um processo multicausal, envolvendo aspectos culturais, econômicos e sociais.

5. A senhora tem algum projeto em andamento atualmente? Pretende escrever outros livros?

Há mais ou menos quatro anos, retomei o tema de pesquisa ao qual dediquei-me no doutorado — história do corpo e da cultura médica em Portugal no século XVI — e iniciei o projeto que tinha há bastante tempo, de fazer uma revisão/atualização da tese e traduzi-la para o português, para publicação. Passadas duas décadas da conclusão da primeira versão, eu ainda considero a abordagem original válida e atual, na variadíssima gama de possibilidades de estudo do corpo. No momento, o trabalho de revisão e atualização dos conteúdos da tese está pronto, e a tradução quase concluída. O livro, intitulado O grande fulcro: representação do corpo e cultura médica no Portugal moderno, será submetido a editoras no início de 2015.

Tenho outro projeto de livro, que deverá incluir diversos ensaios produzidos desde o início da pesquisa que venho desenvolvendo nos últimos quase 15 anos. Os diferentes capítulos tratarão de aspectos como religiosidade desviante, ideais de virtude e santidade no universo monástico, práticas da escrita e oralidade, relações de gênero no contexto português e concepções da história em Portugal.

6. Deixe uma mensagem para os leitores da EDUFBA.

É uma satisfação ver o empenho, o dinamismo e a qualidade do trabalho da editora da nossa universidade. Isto inclui a participação do seu corpo de leitores, que se traduz na presença nos lançamentos, no interesse nas novas edições e no diálogo neste simpático espaço do autor.

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