A subcultura gay em Portugal nos tempos da inquisição
   1 de abril de 2014   │     16:11  │  0

Artigo – Parte I

Por  Luiz Mott – Estudou no seminário dos dominicanos de Juiz de Fora, formado em Ciências Sociais pela USP em pleno regime militar, Mestrado em Etnologia na Sorbonne, Paris; Doutorado em Antropologia pela Unicamp, Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia-UFBA até 2004, quando se aposentou com 32 anos de magistério no ensino superior. É pesquisador do nível mais elevado do CNPq.

“A homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade”, costumava dizer Goethe,[i] e certamente Portugal não deve ter fugido à regra quanto à ancianidade da prática homoerótica em seu território. Desmembrada da Espanha no século XII, a Lusitânia “partilhava dos vícios e tendências que aí não só espontaneamente desabrochavam entre os originários, mas ainda dos que os invasores lhes haviam inoculado. E a sodomia, como se achara terreno propício, com larga pujança se expandiu entre os lusitanos.” A afirmação é de Arlindo Camilo Monteiro, o precursor dos estudos sobre a homossexualidade em Portugal, autor do ainda insuperado Amor sáfico e socrático[ii].

De fato, embora date de 342 a primeira lei anti-homossexual no Ocidente – o famigerado édito de Constantino II, retificado em 390 pelo imperador Teodósio, condenando os sodomitas à fogueira, já nos 650 nossos ancestrais visigodos adaptam suas leis ao Direito Romano cristianizado, condenando os sodomitas à pena de castração, determinando também que fossem apedrejados ou queimados os judeus que insistissem na circuncisão [iii].  Portanto, se há   penas previstas na legislação é porque havia sodomitas também na sociedade visigótica, aliás, como se tem notícia de sua existência na Lusitânia à época da ocupação romana.[iv]

As primeiras referências históricas à homossexualidade no reino de Portugal aparecem nos famosos Cancioneiros, a partir do século XIII, onde diversos homens do povo e da nobreza são referidos como amantes da cópula per annum,distinguindo-se desde já dois papéis sexuais: o ativofodincu e o passivo fodidincu, termos que, segundo o dicionarista Moraes, foram emprestados do italiano e correntes entre os portugueses desde o tempo do Código das Sete Partidas (1341). Insultar um confrade com epíteto de fodidincu chegou a ser penalizado, na vila de Tomar, com o castigo de cinco açoites, comprovando-se o quão aviltante era considerada a passividade sexual.

Os séculos XIII e XIV são considerados pela mais moderna historiografia como a época em que a intolerância à homossexualidade e às minorias étnicas, sobretudo judeus e mouros, tornou-se mais violenta na Europa Ocidental, refletindo-se fielmente nas leis e instituições civis e eclesiásticas[v]. A Península Ibérica não escapou a esta onda de intolerância, tanto que exatamente no mesmo ano em que é afastado do trono o primeiro monarca lusitano infamado de sodomita, D. Pedro I (1439 – 1446), promulgam-se em Portugal as Ordenações  Afonsinas, o documento mais contundente contra a homossexualidade, e no qual vários outros diplomas vão se inspirar, onde se define a sodomia como o pior de todos os pecados cometidos pelo gênero humano: “Sobre todos os pecados, bem parece ser o mais torpe, sujo e desonesto o pecado de Sodomia, e não é achado um outro tão aborrecido ante a Deus e o mundo, pois por ele não não somente é feita ofensa ao Criador da natureza, que é Deus, mais ainda se pode dizer, que toda a natureza criada, assim celestial como humana, é grandemente ofendida: somente falando os homens neste pecado, sem outro ato algum, tão grande é o seu aborrecimento que o ar não o pode sofrer, mas naturalmente fica corrompido e perde sua natural virtude. Por este pecado lançou Deus o dilúvio sobre a terra e por este pecado soverteu as cidades de Sodoma e Gomorra; por este pecado foi destruída a Ordem dos Templários por toda a Cristandade em um dia. Portanto mandamos que todo homem que tal pecado fizer, por qualquer guisa que ser possa, seja queimado e feito pelo fogo em pó, por tal que já nunca de seu e corpo e sepultura possa ser ouvida memória.”[vi]

É a partir de então, meados do século XV, que inúmeras leis e ordenações , tanto civis quanto eclesiásticas, repetirão a mesma condenação bíblica à homossexualidade, tornando legalmente a sodomia o mais horroroso e abominável dos crimes. E os sodomitas, os causadores de todas as desgraças da natureza.

Com as Ordenações Manuelinas (1521) e Filipinas (1606), confirma-se a pena da fogueira aos somítigos, que passam a ser equiparados aos criminosos de lesa-majestade e de  traição nacional, ficando por conseguinte seus descendentes inábeis e estigmatizados por três gerações sucessivas, gratificando-se regiamente a quem delatasse os praticantes do abominável pecado nefando. [vii]

As leis eram draconianas, porém como o mau exemplo vinha do trono, as justiças fechavam os olhos aos infratores: D. João II (1481-1495), neto de D.Pedro I, apesar do cognome “Príncipe Perfeito”, foi tão infamado de praticar o mesmo vício homoerótico do avô, que chegou a dizer: “Menos mal ser puto, que ser mandado”, utilizando-se de um velho termo corrente também no espanhol, sinônimo de sodomita. Igualmente D. Afonso VI (1656-1683) prestou culto à Vênus  Urânia: teve tão escandalosa relação com os irmãos Conti, que foi obrigado pelo Conselho de Estado a expulsá-los do reino7. Eis como o prosador e moralista Manuel Bernardes descreveu este período tão marcado pelo relaxamento dos costumes: “As espadas largas degeneraram em cotós, os capacetes se trocaram em perucas; já o pente em vez de se fincar na barba ensanguentada, se finca publicamente na cabeleira, alvejando com polvilhos. Cheiram os homens a mulheres; não a Marte, mas a Vênus…”[viii].

Instalada em Portugal a Inquisição em 1536, foi apenas em 10 de janeiro de 1553 que D. João III concedeu uma Provisão autorizando os Inquisidores a procederem contra o pecado nefando. Provisão que certamente foi solicitada pela cúpula inquisitorial, posto que desde 1547 já encontramos cinco sodomitas presos, processados e alguns degredados para o Brasil – entre eles, um moço-do-rei e um  criado do governador.[ix] Quer dizer: o “vício elegante” se alastrava pelos palácios, do trono à cozinha.

Em 1555, nova Provisão, assinada esta pelo cardeal D. Henrique, inquisidor geral, confirmando a competência do Santo Ofício em queimar os fanchonos. Enquanto na vizinha Espanha desde 1524-1530 Clemente VII autorizara as Inquisições de Aragão, Saragoça, Valência e Barcelona a perseguirem o nefando [x] , é somente em 1562 que Pio IV promulga semelhante Breve Apostólico para as inquisições portuguesas, ratificando-o em 1574 Gregório XIII.[xi]

Nos dois primeiros Regimentos da Inquisição Portuguesa, de 1552 e 1570, não há referência à sodomia, somente aparecendo tal crime  no Regimento de D. Pedro de Castilho (1613),  sendo este inquisidor considerado na época, pelos próprios fanchonos, como prelado “que não perdoava aos sodomitas.”[xii] Diferentemente da Espanha , estipulava-se com clareza que  o Santo Ofício tinha alçada apenas contra o pecado de sodomia perfeita, isto é, a penetração com ejaculação dentro do vaso traseiro, ficando fora do seu conhecimento os pecados de bestialismo e molice, incluindo-se neste termo todos os demais atos de sensualidade não dirigidos à cópula anal:  masturbação individual ou a dois, felação, anilíngua etc. [xiii] No regimento de D. Fernando de Castro (1640), o Papa Paulo V (1605-1621), através de cartas do Cardeal Melino, ratifica o poder das Inquisições Portuguesas de perseguir os sodomitas, condenando à fogueira sobretudo aos mais devassos no crime, os que davam suas casas para cometer este delito ou perseverassem por muitos anos na perdição. O castigo devia ser público e exemplar: Auto de Fé, açoites até o derramamento de sangue, confisco de bens, degredo ou fogueira, dependendo da gravidade e contumácia do fonchono. O lesbianismo, chamado de sodomia  foeminarum, a partir de 1646 é descriminalizado em Portugal, embora continuem os padres do Santo Ofício a perseguir asodomia imperfeita, i.é., a cópula anal heterossexual. [xiv] No último Regimento (1774), o Cardeal da Cunha repete mutatis mutandis a casuística dos anteriores, transferindo-se, contudo, ao arbítrio do rei decidir ou não pela pena de morte em casos de “razão especial e política”, certamente quando o réu de sodomia fosse membro influente das altas esferas do reino.

[i] A.N. Farias – Homosexualismo creador.  Madri, J. Morata Editor, Madri,  1933, p. 266

[ii] C. Monteiro – O amor sáfico e socrático. Instituto de Medicina Legal de Lisboa,  1922, p.132

[iii] J. Boswell – Christianity, social tolerance and homosexuality. University Press, Chicago, 1980, p.174

[iv] 4. M. Pessoa – História da prostituição em Portugal. Editora F. Pastor, Lisboa , 1887

[v] Boswell, op.cit. p.334

[vi]  A.A. Aguiar – Evolução da pederastia e do lesbianismo na Europa. Saparata do Arquivo da Universidade de Lisboa, vol. XI, 1926, p. 519.

[vii]  A.A. Aguiar – “Crimes e delitos sexuais em Portugal na época das Ordenações.” Arquivo de Medicina Legal, vol. III,  março-junho, 1930. Anônimo – História de Portugal. Oficina da Academia Real das Ciências, Lisboa, 1788,  tomo III, p. 161

[viii] M. Bernades – Nova Floresta. Vol. II:314; vol. III,  Lisboa,  1706, p.161

[ix]  Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processos nºs 4170; 6614; 352; 3112; 4030. (Doravante abreviaremos o referido Arquivo com as iniciais “ANTT”)

[x]  B. Bennassar – L’ Inquisition espagnole.  Paris, Hachette Marabout, l979, p. 335

[xi]  ANTT, Index dos Repertórios do Nefado, (143-7-44).

[xii] ANTT, Inq. Lxª., Proc. 1312

[xiii] J.L. Flandrin – Le sexe et L’Occident.  Paris, Seuil, l98l,  p. 340

[xiv]L.Mott – “Da fogueira ao fogo do inferno: a descriminalização do lesbianismo em Portugal, 1646.” Comunicação apresentada na International Conference on Lesbian and Gay history, Universidade de Toronto, Canadá (1985)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *